4 de dezembro de 2024

Dávida de Tara Branca - pratica de hoje

 Fecharam-se pétalas de lírio branco sobre mim, como uma cabana

Sob elas me deitei de lado no chão abraçando meus joelhos 

A suavidade se impôs a mim

Quando fechei os olhos pude vê-la em sua eterna benevolência 

De pele branca cor de papel, e gélida, e suave como as pétala que nos cobriam. Uma pele feita da mesma matéria das flores. Braços longos e dedos finos me abraçaram e adentraram meus cabelos. Um colo imenso me teve, perfumada e segura. Pra sempre, eu sabia. 

Chama-la mãe seria diminuir sua força, agora sinto ao buscar descrevê-la. Era ela na verdade a rainha da benevolência eterna, a consciência da alegria da vida por si mesma. 

Te peço que me ensine, Rainha, a me amar como você me ama. Ficarei eternamente deitada em seus braços e colo gelados como um rio que está sempre a correr, e que me envolve corpo mente e espirito na certeza de seu amor. 

Que tudo falhe, se dissolva, se estilhasse no chão como um cristal denso - estarei junto de ti para gargalhar disso e observar o prisma em cores se espalhar pelo espaço e invadir nossos corações. 

Num mar de abundancia de amor, onda após onda, mergulhamos. Do outro lado saímos com os olhos cheios da profundeza misteriosa e radicalmente benévola da vida. 

Te saúdo e te venero, Grande Rainha Branca. Me cubra sempre com suas pétalas e me dê seu colo, sem que precise buscar. Vamos juntas nessa brincadeira. Pensarei em você todos os dias e deitarei lírios brancos nas beiras dos rios, pra te presentear. 


14 de novembro de 2024

o caminho do olho

 

Há uma que me espreita quieta no canto do corredor

quer responder por mim, me fazer refém, mijar na minha cama, gritar com as pessoas e depois me jogar da janela. É uma criança terrorista, armada, contra a parede, mirando um corredor escuro, vestindo uma camisola do Snoopy.

No dentro dela

há uma fenda 

pra dentro 

tão vertical 

que a suga pra baixo

e que a arremessa 

pra fora 

tão radicalmente 

que nesse paradoxo 

se embrulha em si mesma 

e gira no espaço

 sem voar 

 sem pousar

 caindo 

pra sempre 

no mesmo lugar

 presa num frame dos anos 80

 

Eu me aproximo, ela corre

Ela cai

Ela chora

Seu peito se derrama no tapete

lambança de vergonha

memórias bordô

memórias de ninguém. 

Pouco há onde estar pois dentro dela é só abismo e tudo fora é sempre como tudo dentro

sem tirar nem pôr


Eu não encontro pessoas

Eu caio dentro das pessoas

Eu busco espaço no olhar das pessoas

Onde quase nunca há

É por isso que eu faço teatro

Porque pelo menos ali

as pessoas vão para olhar

e elas ficam de olhos abertos o tempo todo


Segredo, te conto

o caminho do olho é o caminho do tato 













31 de outubro de 2024

Diagrama interno

Eu olho para as coisas com meus olhos 
Os olhos das coisas olham pra mim 
eu tenho agonia dessa troca de olhares 

Faz tempo que busco lugares úmidos e encontro lugares áridos 
Minha alma tem afinidade com a água, o musgo e a lesma 
Vem-me sempre pessoas com pratos rasos e secos 
Lambo-os em busca d'água 
Minha saliva os hidrata 
Depois o sol os seca e eles vão embora 
Minha língua guarda a memória do atrito 
Tenho sede mas já não ligo 

Nessas casas que tenho morado há sempre um pó escuro pelo chão 
Foligem das ruas 
pele de gente que anda sob o sol 
uma lesma sob o sal já viram?
 água escorrendo pro ralo 
de um piso frio na varanda de alguém 
na região dos lagos 

Há um diagrama interno 
Poeira se junta ao sol e ao calor Se junta ao barulhos, apitos, motocicletas Se junta ao enjoo, ao susto, ao cansaço 
Se junta ao deserto, à solidão, ao caminho escasso 

Riacho se junta ao salgueiro, que se junta à pedra, ao musgo, a lesma, a noite, a lua, a vagina, ao sonho, às cores, à alegria, ao mistério, aos vagalumes, a escrita, a arte, a beleza, a minha beleza, a minha lesma, a minha vagina, a minha pele, a minha vida fresca, a selvagem vontade de multiplicar-me, à excitação pelo úmido secreto da vida 

são opostos os lados do diagrama 
Vivo no lado que nao gosto em busca do seu oposto 

Enquantao não acho, me confundo com qualquer coisa 
A confusão ficou grande demais, preciso ir na essencialidade para livrar-me dela 

Menos tempo de tela 
Menos tempo de fora 
Menos tempo 
Mais espaço 
Mais espaço do lado de dentro 
Mais dentro na paisagem do espaço 
Mais umidade para o caminhos dos pés 
Mais pés para molharem-se no riacho 
Mais riacho para as pedras 
Mais pedras para contarem-me segredos 
Mais segredos para contarem-me caminhos 
Escrevo, escrevo, e nunca passo

27 de outubro de 2024

uma só

O que mais me dá dó é que a vida é uma só, e eu ainda estou de pijamas

velho amigo

Novamente aqui, olá. Uma carta ao mar, nesses momentos nos quais eu busco encontrar deus dentro de mim e acabo escrevendo sobre meu intestino. Uma anatomia da melancolia. Enfim, eu so precisava escrever nesse diario. As redes sociais nos ensinaram a só produzir coisas que podemos mostrar aos outros e hoje lembrei de voce, ANFIGURI, esse lugarzinho esquecido do mundo. Tem 16 anos que te frequento. Nossa relacao é mais velha que muitas amizades humanas. Voce, de alguma forma, é meu amigo. Me vejo em todos esses anos construindo a mesma paisagem, mesmas palavras, eu era tao assim como sou desde que nasci... e isso me reafirma que nao posso fugir de mim, apesar de tudo. As vezes eu quero muito sabe. Ser outra. Ter outras cores na minha paleta. Mas sei la, fazer o que. eu sou isso aí, Anfiguri. Eu sou essa alma do meu tempo.

6 de junho de 2020

teatro de geladeira


ATÉ A GELADERIA
Muitas vezes, lendo ou ouvindo ideias interessantes, me acomete uma grande vontade de alinhavar pensamentos. A maioria dessas vezes eu simplesmente não tenho achado terreno para isso. Tenho bastante ansiedade ultimamente, que é basicamente como ter dor de cabeça ou gastrite ou ressaca, na minha geração. Todo mundo sofre de ansiedade como antigamente, na época dos meus avos, todos deveriam sofrer de dor de dentes.
A ansiedade é imediatamente transformada em imobilidade física cujo único membro do meu corpo que dela não participa é o dedo, que desliza o feed de todas as redes sociais na tela do meu smartphone. É obvio dizer que passo tempo demais olhando de tudo um pouco, tenho desejos e insights que me abandonam assim que eu passo à próxima imagem. É um constante abrir a geladeira sem saber o que está procurando. E sem fome.
Quando me dou conta estou na frente da geladeira, porta aberta, e tudo pra trás e pra frente é um filme desfocado. O que eu vim fazer aqui? O que eu procuro? Para onde vou? E todas as perguntas existenciais que couberem nesse tempo constrangedor que me percebo vazia na frente de uma geladeira cheia.
Para sentar agora e tentar alinhavar pensamentos eu tomei 5 gostas de Clonazepan. Faço isso recorrentemente, além do prozac cotidiano. Essas drogas de sedar estados extremos de desconforto são como um fast food da experiência espiritual do aqui-agora. É bem mais fácil com elas, um parque de diversões no corpo, mas eu sei que há funções do meu organismos que elas colocam pra dormir e que talvez só acordem daqui há alguns anos. Hibernações confortáveis.  Uma pergunta com um martelo: o que me sobra se eu não me entorpeço? O que eu faço com o desconforto? O que ele faz comigo? Pra onde vamos, eu e ele de mãos dadas, se eu desse a chance dele vir e ficar um pouco mais de tempo?
Não sei. A angustia me convida a me retirar de mim apontando a porta do aposento e, com toda a elegância, eu saio.
A questão é – estamos em casa, em isolamento social. Não trabalho, não recebo, não gasto tanto e o tenho comida. White people problems, obviamente. Enquanto isso no Salgueiro eu já perdi a conta dos tiros disparados só essa manhã.
Eu pensava que algo fosse acontecer, que fosse me acordar para novos mundos, me dar energia para construir outro platô possível pras sobrevivências que eu amo, como espécies animais habitantes de muitas dimensões. O teatro, esse cachorro simpático,  lugar cada vez mais raro de meu acesso e ainda assim tão vivo em mim, todos os dias. Todos os dias há alguém que sobre um palco (que é a vida presente), age.
Sei que hoje alguém acordou, cambaleou pela casa até a cozinha,  os pés ainda dormindo, estranhando a dureza do chão, unhas da maneira como a natureza as fez. Abriu a geladeira. E entrou em um teatro vazio. Sem roteiro. Estava ali para ensaiar algo. Corpo, espaço, respiração. Ela se apoia em seu corpo para estar ali fruindo da efervescência que é haver vida sobre um tablado.
 Dentro da geladeira um palco. No hiato entre os mundos, onde mora o teatro, também mora a geladeira. Abrindo a geladeira a gente encontra o vazio, o palco vazio. E a gente sente: agora é comigo, eu que escolho pra onde vou. A sede e a criação são farinha do mesmo saco.

DENTRO DA GELADEIRA
Agora estou aqui.
Começo pelas tensões. Não é simples sentir, aceitar as tensões. Teria de se mover com elas ali mesmo. Mas porque mover? Mover o que? Um movimento sem vocabulário. Seria apenas um corpo existindo e nisso não parece haver arte até porque ninguém vê. Que historia eu vou contar, dentro da geladeira, nesse palco vazio que é a geladeira aberta frente a minha mente em branco, com o mundo aí se virando e revirando la fora, aqui dentro, em todos os lugares?
E palavra? Qual seria a palavra.
Uma palavra para o agora, alguma capaz de captar o instante da egrégora, os anseios que não se sabem ainda palavras. Ou o movimento que não se sabe ainda movimento.
Tudo é corpo ainda.
Corpo é tudo em potência.
Beleza.
Beleza é agora a palavra que me cerca, por todos os lados. No momento que penso em dizer beleza talvez já não seja bonito, mas é disso que se trata uma construção cênica. A gente trabalha até ficar bonito. Então eu começaria assim: evocando a beleza. Tudo que é belo.

UMA TRANÇA ENTRE A GOTA, O TEMPO E O MAR
O trampolim estético me manda para o mundo da observação agradecida, que acho que muitos chamam de religião, e eu concordo. Se pudermos trabalhar nos despachos estéticos das fricções do sem sentido e do arrebatamento da consciência do finito, talvez possamos fazer uma trança entre a gota, o tempo e o mar. A gota e o mar, de Sidarta Galtama:
 “O que fazer para uma gora de agua não secar? “Joga-la de novo ao mar”.
Lançar a minha gota de agua que é a minha alma, ao mar, que é a experiência de vida – isso se dá através de uma ato de estética. Como um despache, um mantra, um silencio, um sacrifício, ou qualquer outra obra de arte.
O que a arte me ensina: qualquer ato estético é um despacho, uma mensagem em dimensão espiritual que passamos uns aos outros e às deuses. É a comunicação propriamente dita.
Pois não dá pra viver em estado de orgia da consciência. Meu corpo é uma máquina limitada. Mas mais limitada ainda a é ladainha de todos os dias me quer tomar a beleza que já é minha.  
Não quero que me tomem a beleza, então abro a geladeira. Todos fazem isso. É isso que fazemos quando abrimos a geladeira: achar a beleza. La onde há um palco vazio, tão vazio quanto um alfabeto de letras, números, formas,  movimentos, jogados uns sobre os outros sem harmonia. Sem dramaturgia.  Busco dar sentido ao corpo e ele me parece um fantoche quebrado de uma peça já encenada há muito tempo e que nem eu sabia o roteiro direito. Esse fantoche fica ali, esperando por um sopro de ar que o movimente. Eu levando os braços, mecho o quadril, ando de um lado ao outro. Alfabeto empilhado, e de repente meus pés que, apesar de serem só meus, ganham a sombra de todos os balés já dançados. Todas as obras estão pairando no ar e sussurram contando piadas sobre o próximo ato. Eu não entendo, pois não o vi. Os fantasmas da arte contam piadas internas mas que quero fazer parte do grupo.
O próximo ato. Qual é o próximo ato? Quem sou eu no próximo ato? Quero voltar a ter meus pés, quero alinhavar palavras para que minha alma volte ao mar. Estou dentro da geladeira, nessa potente fenda do espaço-tempo. Espero que mais alguém abra essa porta:  eu vou agarrá-lo pela roupa e faze-lo entrar. Sentar-se na plateia que é aquele lugarzinho na porta onde geralmente colocamos os ovos. Hoje colocarei ali bundas. Todas que abrirem essa porta.  Eu vou perguntar “isso te faz sentido?” Se eu levantar assim o braço, e depois pular e virar de costas: faz sentido?  E se eu começar com “há algo de podre no reino da Dinamarca?” Você vai querer ouvir essa história?

Telegrama chinês

Hoje mesmo
vivi um verão inteiro
Talvez amanhã acorde em 2016
Quem sabe
Enquanto calculo meu ciclo
mancho os lençois
a lua se esconde
Meus gatos agora devem estar dormindo na janela
sob o sol carioca das duas da tarde
Lembro quando o canino esquerdo do mais velho caiu
Ele ainda nem morreu e eu já tenho tantas saudades
Aqui, 1:11 da manhã
Peço nescau gelado no serviço de quarto
Amanhã trabalho cedo, no palco, que é meu lugar favorito (depois das florestas e dos buracos dentro das cachoeiras)
De manhã cruzo com crianças chinesas de mochilas e franjas
Aqui os bebês também choram
Todo o resto é diferente
Invento o conteúdo dos letreiros
Me divirto só
caindo de bicicleta em curvas acentuadas demais
em estradas encantadas, só minhas, por 10 km
Comi ostras
coisas de dentro de conchas
algas e transparências estranhas
Fecho os olhos e não me lembro onde mesmo estou
Havia sonhado com paisagens tão antigas
Com toques que já não existem mais
Depois meditei sobre Saturno e pedi para que ele fosse sempre gentil comigo
Sei que não é de sua natureza
Mas não custa tentar