18 de outubro de 2006

O filho bastardo do filho bastardo do Sol

O filho bastardo do filho bastardo do sol tem olhos pálidos e doces, anda descalço e tem calças curtas. Seu oficio é dirigir uma maquina triste, que bem... ainda não sei bem do que se trata. Brinca na lama nos tempos vagos e gosta de traçar rostos risonhos e de olhares profundos no chão de barro esfarelado. Ele aponta e diz: esse é o seu pai, e aquela mais adiante, que tem uma corda no pescoço é a sua mãe.
O filho bastardo do filho bastardo do sol tem bochechas rosadas e boca rasgada. É o tipo de criança que nunca chorou e não viu nunca lagrimas, mas carrega uma margarida despedaçada no peito frágil e gosta de olhar a lua nascer enquanto finge dormir. Pra ser mais exato, é o tipo de menino que não dorme. Seus olhos não deixam que qualquer centelha do mundo não o comova profundamente e em silencio ele grita.
Seus pés tocam no chão como a um veludo macio e ele come minhocas como eu como lagostas. Antes de colocá-las delicadamente na língua, ele as observa, anel por anel, e então efetua o ato na maior devoção divina.
Mas o filho bastardo do sol do filho bastardo do sol dirige a maquina triste. A maquina triste faz um barulho alto, mas segundo ele, ninguém mais escuta a não ser ele mesmo. E eu fico pensando que deve ser duro ser o único a ouvir um barulho, qualquer que seja, de sinos ou trovoes.
Ele olhou pra mim e perguntou:
-você está ouvindo?
E sem que eu dissesse uma só palavra, o menino se virou e andou para longe. Ele sabia que eu nada ouvia e que, a menos que minha mente- desesperada para compartilhar da experiência- começasse a criar ilusões.
Eu olhei alto para as estrelas hoje. Gigantes como baleias, gigantes. Brancas, como margaridas despedaçadas. E eu pensei na maquina triste. Olhar pras pessoas lá embaixo, como formigas. Sentir no rosto o vento gélido que congela e eleva, voar, enfim. Porque não voa?

Pessoas como formigas correm ligeiras para enfiarem suas cabeças no travesseiro e deixarem de ouvir o barulho da maquina triste, certamente. Eu no alto, pensando: porque não voam?
Trinta mil anjos no ar. Olhares distantes, corpos pequenos quase invisíveis, dançam na chuva muito muito fria, gargalham baixinho, existem, enfim, certamente existem.
Nessa terra das estrelas cadentes, como meteoros fogosos e sinceros, o rio corre ao contrario, o lago seca, os peixes dourados morrem. Mas tudo é tão lindo, tão lindo. Eu queria saber dos corações partidos. Achei um na calçada da minha casa hoje de manha. E eu queria saber da neblina da madrugada, densa e nobre, e pesada. E eu queria saber das expectativas frustradas, e dos encontros perdidos. Nessa terra dos laços prateados e do ar de canela, ouvimos o indizível, procuramos o não encontrável. Nossas esperanças nascem e retornam para as cinzas, num fluxo inatingível por qualquer carne, por qualquer corpo, ou em qualquer dor. E todos nós, dia a dia, nascemos e morremos em divina compreensão de qualquer partícula que exista e que flutue como penas de chumbo sobre nossas cabeças. Operários do castelo de vidro, nunca quebrado, mas ainda que inteiro, cortante de pulsos brancos e também dos negros, porque não?! Mas tudo é tão lindo, tão lindo, que choramos e morremos em profunda devoção a qualquer copo que se estilhasse feiamente no chão. Em compreensão, amor e compaixão, por qualquer caco e por qualquer desenho inacabado, um suspiro dado, uma vida, que seja, uma vida, porque não?!