27 de novembro de 2007

Aos nossos pecados

Uma estrada longa. E os pés descalços rasgados nas solas. E os tornozelos ocos, doídos. Uma doce lua brilhando no céu da noite... uma mulher chamada Iolanda vinha.

A estrada brilhava azul prateado sob seus pés. Dos lados um breu fecundo. A mata engolia seus gemidos noturnos. O próprio rio calou seus lamentos. Iolanda passava.

Narinas abertas e o suor escorrendo pela testa e entre os seios. A noite era fria, mas não para ela. Entre os finos e delicados dedos, entre os cabelos negros e sujos, entre os dentes de marfim gasto, o vento dançava em suaves rodopios.

Em sua boca entreaberta um arzinho cítrico se deitava. No puro contorno dos lábios mais de mil inscrições sagradas.

Iolanda carregava o mundo no ventre e suas pernas tinham a força dos deuses para não dobrarem-se sob tal peso.

Iolanda tinha os corações de todos os homens do mundo a pulsarem dentro de seu estomago.

Iolanda tinha o destino nos olhos.

Dentro de um lenço amarrado carregava a cabeça de três recém nascidos. O sangue ralo fugia entre as tramas do fino tecido, gotejando no chão barrento como água benta sobre a testa dos pecadores. Ela trazia a cura. A cura para o que nem o fogo, nem a água poderiam limpar: nós.

22 de novembro de 2007

De noite eu visito o inferno

Choveu tanto, tanto, que todo o lugar começou a encher e transbordar. As pessoas todas entraram dentro da casa, subiram as escadas. Ficaram lá em cima, olhando a chuva dominar tudo, aquele furacão imenso que destruía tudo. Os gambás, com medo, subiam nas arvores tremulas e fracas. Eles eram todos pretos, com aqueles olhos saltados, como homens drogados. Estavam todos loucos. Aquelas caras de emburrados, que iriam matar pessoas e comer urtigas. E os cavalos passavam assim, também como furacões, fazendo a água barrenta sob seus cascos se espalharem como espirros de espíritos furiosos. E o horizonte negro parecia dizer: esse é o ultimo dia. Esse é o ultimo dia. Ultimo dia.

Era então o ultimo dia, e todos bebiam cervejas longas e quentes envolta de mim e tinham os olhares perdidos, zumbidos na cabeça, e mil planos para um amanha sombrio, que poucos sabiam que não existiria. Eu estava irremediavelmente sozinha. Estavam todos loucos, hostis, querendo matar os cavalos.

E os meus pés molhados, eles doíam muito mesmo. Era como se a água tivesse chegado nos meus ossos, e eles houvessem ficado frios e enferrujados. Eu só queria ir pra casa.

E então quando eu cheguei em casa só tinham espíritos. Meus pais, na mesa da cozinha há tantos anos... as mesmas gargalhadas nervosas, tosses descontroladas, pão com manteiga e cheiro de café velho. E aquela gosma de noite confusa na boca, de leite azedo, um cheiro de manha tediosa, com uma panela de pressão fazendo barulho no fogão.

Eu fui procurar meu irmão mas ele estava de saída pra correr de carro pela lama que a chuva tinha deixado. Ele desceu as escadas e não olhou pra mim;foi embora pra voltar em tempo indeterminado.

E eu vagueei pela casa. Pés úmidos e escorregadios. Um passarinho chato gritava lá fora, passarinho que grita pra dizer que a chuva terminou. Mas não importava. O sol veio amarelo fazendo a água que ainda pingava de tudo brilhar feito diamante. Mas não importava. O sol me fez lembrar uma infância chata, quando eu fingia que ia caçar jacarés e lagartos e levava um cantil verde-mato. E voltava pra casa sabendo que não tinha nem visto jacaré nenhum.

Aquele era o meu ultimo dia e eu estava triste porque eu sabia que ele ainda ia demorar pra acabar.