20 de setembro de 2007

Lanternas e sinos

Tac tarac tarac tac tarac tarac tac tarac tarac tac Tac tarac tarac tac tarac tarac tac Tac tarac tarac tac tarac tarac tac tarac tarac tac

Quando os tambores soam como o coração de deus. Quando sua própria respiração se integra suavemente e ininterruptamente à rotação do universo. Quando o homem pensa em virar padre. Quando a santa sabe que santa é. Quando a baleia canta lá no fundo e fez uma criança nascer aqui em cima. Quando Alice abre os olhos. Quando a pólvora dispara. Quando, enfim, chove!

Dumc durunc durunc dumc durumc durumc dumc

Quando quinze mil olham juntos para o mesmo céu.

Quando os braços são agitados envolta do corpo em transe. E os dedos formigam. E a beleza se manifesta em meia fração de segundos em um lugar onde você não pode identificar mas está lá e sempre esteve e quem era você que não viu antes?

E as peles queimam sob o mesmo sol, e recebem a mesma benção do sal do mar que se estende até lá o fim. Esse arrepio. Tudo isso.

Os tambores dizem “não há o que temer. O escuro escorre e amacia a alma. O veneno da mais cruel cobra amolece os ossos e faz o velho homem descasar em paz. Assim, de levinho, é só escutar com atenção Shhhhhhhhh..... aí vem um passarinho!”

15 de setembro de 2007

Ana algemada

Ele a trancaria em um quarto escuro até que ela chorasse e pedisse desculpas. Ele não agüentava mais sua liberdade, seu jeito de afirmar que vivia. Ele amarraria seus pés em uma pesada peça de aço maciço e a deixaria apodrecer de tantos anos acumulados nas suas juntas. Ele lhe conservaria a vida, claro, e guardaria suas lagrimas em um pote e gravaria o som do desespero em uma fita cassete empoeirada que ele guardara a vida inteira especialmente para aquela ocasião. Não era suficiente que Ana existisse em desgraça, não era isso. Ele a queria feliz como um coelho. Ele amava Ana, e quem ama cuida, já se sabe. Por isso ele amputaria os braços e as pernas de Ana e a deixaria em um poço com água até o pescoço até sua carne começar a derreter e ele ter de enxugá-la com o maior cuidado. Até que Ana sofresse por ele, até que ela chorasse, ela ficaria ali. E depois não importava. Poderia viver o que quisesse e até ser feliz, com uma família e almoços de domingo. A única questão era que seria ele o libertador. Ele libertaria Ana e ela, com lagrimas nos olhos, não saberia mais viver se ele, como um passaro preso a vida inteira que não aprendeu a caçar seus próprios insetos. ele tiraria sua coleira. Ele a deixaria. Feito um macaco adestrado. Feito uma orca em cativeiro. Feito um homem qualquer de nosso tempo.

Nervoso, ele sabia que não agüentaria mais muito tempo estando Ana livre. Ela havia rido dele e depois havia partido. Ela nunca havia estado lá. Ana nunca havia estado, em momento qualquer. Vadia. Mentirosa. Terrorista. Ele ficou anos aprisionado no coração de Ana, nas mãos e nos cabelos dela. Ele só ouvia os seus risos e atentava as suas quedas. Ele havia estado anos caminhando em círculos no cubículo que é o coração oco, pobre e sujo de Ana. O coração vil. O coração perverso. O coração de Ana, sua casa, lar, o único lugar do mundo.

E quando Ana gritasse do fundo do poço, ele gritaria de volta: a culpa é sua, aninha. Eu aprendi com você a aprisionar pessoas.

Será que ela o entenderia? Não. Ana nunca entenderia a ninguém. Ana é só um riso, uma fagulha de paixão que logo se apaga. Ana é uma miragem, uma coisa falsa que nunca existiu e nunca foi fiel e nunca vai ser. Ana era uma mentira, a grande mentira do mundo pra si mesmo. Ana era sua prisão eterna.

E ele havia descoberto. Havia descoberto que o melhor a se fazer com uma prisão é aprisioná-la. E deixá-la sofrer. Fazê-la chorar. E depois gritar em resposta: seja seu próprio cárcere! Se fode!

14 de setembro de 2007

anh?

café forte sem açucar. vento leste misterioso. quem chega por traz dos montes de areia? o destino guarda borrões de lama seca e muitos enganos. o cigano esfarrapado só lê mãos amputadas. o destino passou, somos filhos de nós mesmos.
um cavalo mudo parado e oculto entre as arvores. um passaro mudo voando oculto nas alturas. um velho mudo descansa na sombra do salgueiro e tece uma verdade em suas mãos trêmulas.
em outra dimensão, gritos e sussurros. em outra dimensão, tôda a verdade. em outra dimensão, deus nos observa e espera, espera, espera, mudo.
de quantas palavras esquisitas eu preciso para dizer apenas "estou aqui"?

11 de setembro de 2007

Fecha os olhos e escuta

Rôo unhas. Arranco pelos. Cabelos queimados. Um pequeno orgasmo e pronto. Você está morto. A arvores caiu. O poste caiu. O gato caiu. O céu caiu. E choveu. Choveu. Choveu fortemente até o chão se desmanchar em qualquer coisa terrosa e secreta.

Dentro dos seus olhos, lindos lagos negros e frios, nada um grande monstro poderoso, com escamas e garras e um grande coração. Oculto na escuridão, ele sabe de tudo, ele vê tudo, e ele espera.

Na água o fogo apaga deixando muita, muita fumaça. Com a superfície do lago, se fundiram muitas e muitas lagrimas. Nós somos duas chamas unidas. Ele brinca com fogo. Ela brinca com fogo. Eu posso ouvir o som do seu monstro a mordiscar gravetos lamacentos. Em uma comunicação silenciosa, ele e o dragão branco que há tempos se apossou da minha alma trocam juras e confidencias.

O que somos nós perto deles? Apenas crianças que brincam com fogo...

As vezes eu penso que tudo vai cair, e que só eles, as criaturas do submundo das almas e sombras, irão voar livremente pelo mundo e soprarão as cinzas de uma realidade desfeita.

Alguma parte de mim sabe que algo grande está por vir. Um bebê, cujo choro anuncia algo como o apocalipse. Você também o sabe. E já não temos medo do escuro. Estamos nus, de braços abertos e peito estufado diante o grande precipício mudo, por toda a eternidade.

3 de setembro de 2007

Wake me up

Uma capa de pedra fosca cobre meu coração. Eu sou uma grande mentira sem graça que o mundo resolveu contar porque não tinha mais nada pra fazer. Eu sou uma fraude. Não olhe pra mim. os espertos sabem do que eles não gostam. E por isso eles ficam longe. Porque assim eles podem não cair em armadilhas. Eu não sou esperta. Nem você. – pensou Alice consigo mesma.

Se eu me curvar para frente e tocar os meus pés, ficarei em formato de circulo e assim a energia que habita o meu corpo se moverá como uma roda de material reciclável e eu tenho certeza que em poucos minutos eu ficaria verde e apodrecida. Por isso não há motivos para tocar meus pés. Eu não enganaria mais ninguém sobre a minha idade e as minhas intenções.

Existe algo dentro de mim que é muito sujo, mas ainda não descobri o que é. Talvez seja você. Talvez seja minha própria vida, ou a sua. Talvez eu tenha câncer.- pensou Alice consigo mesma, olhando nos olhos de seu leitor.

A lua hoje é um carvão em brasa pela metade: meio vermelha meio inexistente. Tenho medo de ficar assim... meio vermelha, meio inexistente. Qual parte de mim ainda existe?- perguntou-se Alice.- ah! Já sei! A que queima! Essa daqui! – e tocou a barriga na altura do estômago.

A questão não é crescer ou diminuir, Lewis. A questão é tocar as coisas ou não tocar. A alma das coisas. A minha grande angustia deveria ser não ter mãos para pegar qualquer coisa. Ou ter mãos demais e não saber o que pegar... digo melhor: a minha grande angustia deveria ser não ter tato em certos momentos, e em outros tê-lo de forma tão aguçada que qualquer toque faria meu coração parar e vomitar.- confessou Alice em altos brados durante uma discussão calorosa com seu criador.

Alice anda por uma longa estrada fina e perfeitamente reta de tijolos amarelos. Horizonte de um lado e de outro. De repente, surge o gato inglês.

Gato inglês – pra onde está indo?

Alice – eu sigo o caminho.

Gato inglês - que caminho?

Alice – ora... Esse, bem aqui. (e bate os pés para indicar o caminho)

Gato inglês – não há caminho algum.

Alice – não é possível que não veja.

Gato inglês – essa estrada?! Sim, eu vejo essa estrada...

Alice – então...

Gato inglês – ela é cumprida demais para se chegar ao final.

Alice – mais ainda assim é um caminho!

Gato inglês – não, não é. Um caminho pelo qual não se pode atingir o seu destino não é um caminho, é um passatempo.

Alice - ...

Gato inglês – pode-se dizer que você anda, mas não minta dizendo que vai a algum lugar.

Alice – então... que caminho devo eu tomar?

Gato inglês – ora, depende de onde quer chegar.

Alice, chorosa – mas eu não sei onde quero chegar!

Gato inglês –então não tome caminho algum.

Alice –nenhum caminho?

Gato inglês – nenhum caminho.

Alice – e o que faço eu então?

Gato inglês – sente-se para não se cansar.

Alice – eu quero ir pra minha casa. Que direção devo tomar?

Gato inglês – em frente.

Alice – mas estava indo em frente quando me disse que esse não era um caminho!

Gato inglês – continua não sendo um caminho...

Alice – não entendo. Os tijolos amarelos seguem em frente, e só. Se minha casa fica nessa direção, não há como esse não ser um caminho.

Gato inglês – não é um caminho.

Alice – mas leva a minha casa.

Gato inglês – leva.

Alice – você é louco.

Gatos ingleses – sim, sou. E você é mentirosa.

Alice – quando eu menti?

Gato inglês – quando me disse que ia a algum lugar.

Alice – eu não disse não. Disse apenas que seguia o caminho.

Gato inglês – como vê...

Alice – ora, isso não é uma mentira!

Gato inglês – pois como não, se não há caminho algum?

(Alice pensa. Coça a cabeça. Olha pra baixo)

Alice – bem... e que caminho você vai tomar?

Gato inglês – eu não tomo caminhos.

Alice – certo... então, que caminho as pessoas desse lugar tomam quando querem ir a algum outro lugar?

Gatos ingleses – todos aqui já desistiram de tomar caminhos.

Alice – isso não é possível! Então o que eles fazem?

Gato inglês – (cantarola)

Alice – você não me ouviu?! O que eles fazer?

Gato inglês – essa foi a pergunta mais estúpida que eu já ouvi.

( Alice chora)

Alice – oh, céus! Eu vou ficar aqui pra sempre!

Gato inglês – e haveria de ser diferente? Estão todos aqui pra sempre.

Alice – e como chegaram aqui?

Gato inglês – essa foi a segunda pergunta mais estúpida que eu já ouvi.

Alice – como chegaram?

Gato inglês – não chegaram.