18 de outubro de 2007

Casa de carrinho ou o quê?

Quando Ana era pequena, ela passava assim pela rua e via aquelas pessoas encostadas nas paredes dos prédios, debaixo de marquises ou arvorezinhas, por aí. Ela nunca pensava nada. Ela nem olhava pra essas pessoas com o cobertor cinza e com cara de espera desarmada. Mas um dia choveu. Choveu enquanto Ana andava pra casa, de mãos dadas com a avó, de volta do supermercado, bem no finalzinho da tarde quanto o céu está azul morrendo mas a rua e os cantos da rua já estão escuros e as luzes amarelas iluminam estranhamente as passagens e as pessoas engorduradas que voltam pra casa também, que nem Ana ou um pouco mais cansadas que ela. Mas então chovia e Ana passava pelas mesmas ruas de sempre e viu umas pessoas cinzas dessas sentadas na calçada, cobertas por um cobertor velho e também cinza, com os pés molhados e um grande carão de frio e solidão. Do lado de uma arvores, no canteiro semi-destruído cinza de cimento, tinha um carrinho de supermercado todo enferrujado, largado lá pra não fazer nada. Foi aí que Ana teve uma idéia, que veio a ecoar, no futuro próximo (já em seu quarto tedioso) como uma opinião sobre aquelas pessoas nas quais ela nunca havia pensado. Foi assim: ela pensou: tinha o carrinho. E tinha a coberta. E tem essas caixas de papelão que ninguém usa mais depois que o que tinha dentro delas acabou. E tem um montão de plástico voando por aí na rua que eu bem vejo. Tem as pessoas, com a coberta, e elas tão com frio e não tem pra onde ir e nem o que fazer. Elas deveriam então pegar o carrinho, virar ele de cabeça pra baixo, cobrir com papelão e depois com plástico. Aí não entraria chuva dentro do carrinho, que a essa altura já seria quase uma casinha. Aí eles entravam dentro do carrinho e se cobriam com a coberta, que por sorte ainda estaria seca, e pronto. Eles passariam a noite quentinhos no canteiro. Era uma solução tão obvia que até Ana poderia executá-la.

Essas pessoas não tem criatividade - foi o que ela pensou, enquanto não fazia nada naquele inicio de noite chuvoso dentro do quarto tedioso e solitário.

Hoje Ana se olhou no espelho. Ela tinha essa cara de espera desarmada e tédio e frio e solidão. Bem igualzinha a cara daquelas pessoas cinzas da rua que não faziam casinha de carrinho de supermercado porque eram sem criatividade e burras ( apesar de Ana nunca querer admitir que existia burrice no mundo pois, existindo burrice, poderia ser ela mesma uma burra sem saber. Não existindo burrice, no Maximo ela seria uma pessoinha cinza sem criatividade.) então ela tinha essa cara. E ela se lembrou diretamente daquele fim de tarde, do carrinho, do cobertor cinza e toda aquela historia. Ela pensou – nossa, como estou parecida com aquelas pessoas! – e se arrependeu de, naquele dia do passado, não ter parado pra perguntar porque é que as pessoas não faziam a casinha de carrinho. Porque só assim – pensou – só assim ela saberia porque diabos não fazia nada quanto ao seu estado atual.

Ana teve medo que ao cruzar com uma criança na rua deixasse a mesma impressão que aquelas pessoas do passado haviam deixado nela. Porque parecia tão obvio, tão obvio que Ana não sabia pra onde ir, e não tinha o que fazer, e tinha frio e esperava por uma coisa que nunca viria, que qualquer criança poderia saber dessa sua condição medíocre. Talvez alguma criança tivesse uma idéia fantástica para arranjá-la um abrigo. Mas as crianças não param na rua pra contar idéias sobre os estranhos para os próprios estranhos, então... então Ana ficaria assim mesmo: sem saber de nada. Que nem as pessoas cinzas que, provavelmente, passaram aquela noite todinha no mesmo lugar molhado que estavam.

2 de outubro de 2007

Diálogoemcimadaponte

Ele disse que não poderia ficar ali ele disse não mas sabia que não era verdade apesar de dizer ao contrario ela sabia que também não poderia ficar ali mas ficou até mais do que o normal porque ele disse que ia embora naquele segundo mas sabia que ela não havia acreditado e por isso e também por sua própria vontade ele não foi. Ela falou que a questão já havia sido resolvida que ele amava ela e ponto final e ele disse essa não é a questão pare de se enganar e ela disse você é quem se engana em pensar que essa não é a questão pois mil e uma pessoas vivem pensando que essa não é a questão e todas morrem sem terem vivido o que tinham que viver que era o Maximo que elas todas poderiam fazer e eu não quero fazer isso com a minha vida e por isso eu preciso de você. ele disse você é louca me deixa em paz eu tenho outra pessoa e eu já decidi o que eu quero. Aí ela chorou. Aí ela disse ta bom mas você vai se arrepender disso porque em um ano ou menos vai reparar que só viveu mentiras e perdeu seu tempo inventando que não me queria quando na verdade nunca pode viver sem mim. ela disse mas tudo bem eu vou embora e você nunca mais vai me ver e eu também encontrei outra pessoa e estou muito feliz e não preciso mais de você mesmo porque você só conta mentiras e eu não quero mais mentiras no mundo porque ninguém precisa delas e a vida é muito mais bonita quando vista de perto. Ela quis se jogar da ponte e ele disse não faça isso porque eu te amo. E ela pensou do isso me adianta se você não está comigo e nunca vai estar mesmo e eu não quero viver sem você eu preciso tomar um café. Ele fumou um cigarro. Ele jogou o cigarro fora pela metade e disse que não queria mais fumar aí acendeu um outro cigarro de filtro vermelho e disse que amava ela. Ela disse foda-se você não faz nada quanto a isso não sei porque então vai ficar com a sua namoradinha gente fina que eu vou pintar um quadro de vocês e expor na minha vernissage com vinhos e depois vou fazer uma orgia com todas as meninas mais bonitas do mundo que nunca vão entender metade do meu olhar e sempre vão ser felizes porque são as mais bonitas do mundo e sabem que são felizes e querem salvar o mundo do câncer e eu sei que você não gosta metade delas do que você gosta do seu gato. Aí os dois ficaram calados e ela virou as costas pra ele e foi andando embora. Aí ele disse o que é isso o que você está fazendo porque você me trata com tanta hostilidade quando eu só te dou amor e amizade? Ela se virou e pegou ele pelo braço e falou escuta aqui você é muito burro.

Aí todas as estrelas riram muito.

1 de outubro de 2007

O Jamais

A tarde pesou como um rinoceronte cansado. Como dizer, ainda, como dizer que Ana faltava? E porque faltava? Por onde andava? Faltava um pedaço de céu. Faltava uma parte da paz. Faltava um suspiro no vento, um sorriso no espelho. Faltava, só. E era Ana. Existia um hiato que gritava, uma ventania não o deixara o dormir durante toda a noite e esse sono... esse sono o doía. O doía pois sabia que jamais o deixaria de sentir. Ele se sentia o maior dos hereges, o maior dos amaldiçoados e o maior dos sábios. Pois só ele sabia de Ana e sabia o quanto Ana faltava. Mas só ele era o incomodo de Ana, o louco solitário a viver em uma falta tremenda, em um buraco tão fundo, que por mais que tentasse não podia ignorar.

“Eu sou o que não existe. Eu sou aquele que acredita em uma historia de fadas. Eu sou o que não pode ser.” - Ele pensava.

Ele vivia como se nunca houvesse conhecido Ana, era um mentiroso. Um mentiroso capturado por sua própria mentira, como qualquer um dos outros. Capturado e enganado. Ele não sabia o que doía mais, ou o que fazia mais sentido. Viver em mentira ou em busca daquele corcel invisível que agitava os ventos quando galopava lindamente durante as tardes mais lindas do mundo.

Deitado no chão do quarto, olhando as folhas verdes a tremerem com o vento frio que soprava lá fora, ele ouvia um grito estridente e rouco e cansado de tanto se repetir, que vinha direto de seu peito. O grito chamava por Ana. Ele o conhecia muito bem. e ele planejava como poderia apunhalá-lo durante a noite, emudecê-lo.

Quando veio o verão, e o vento frio parou de soprar e as folhar pararam de tremer, ele ainda estava deitado no chão do quarto. O grito ainda ecoava por toda a casa.

O mundo não permitira, simplesmente não permitira, que o grito morresse.

E agora? – pensava ele - E agora, Ana?