29 de julho de 2009

Eu estou num barco. Água corre aos lados. Empurra. Posso apontar o invisível: lá! Lá estou. Meu coração voando fazendo sombra no rio, à minha frente. Eu estou viva.
Desliza sobre o espelho do céu. Dedos, os meus, furando as nuvens lá no alto. Eu tudo posso, e tudo sou. Sou eu esse mundo. Sou eu inteira.
Há um vasto campo estrelado que envolve todas as almas, embalando num fluxo de secreção amorosa e quente as todas possíveis quedas de minha vida. Há uma estrada. Há a morte. As horas sumiram, dissolveram-se no Tempo que é benevolente e forte.
O Estar é seguro. Deito e rolo sob o sol do meio dia.
Incrivelmente Belo. Incrivelmente Belo. Incrivelmente Belo.
O jardim das beldades. O jardim de deus. sou uma flor branca. Sou uma abelha grávida. Um cisne. Uma gralha.
Não interessa, mais nada, pois tudo está bem apesar de eu ser retardada. Tudo está bem, tudo está incrivelmente bem.
Grata.
Obrigado, obrigado, obrigado.

2 de julho de 2009

AeBdecimemmorrer

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Ele: homem forte, trinta e poucos anos, muitos pelos nos braços. usa uma calça jeans surrada e uma camiseta branca manchada de tinta azul. Segura um martelo entre as mãos.
Está sentado em uma cadeira de metal antiga, que pegou muitas chuvas e tem as dobras enferrujadas. As botas manchadas de tinta. Um olhar de dragão de pedra, que protege o tesouro secreto, que só ela conhece. Mãos entre as pernas. Pernas cruzadas sob as astes de ferro enferrujado da cadeira. Olhos fixos nela.
Ela: moça, vinte e poucos anos. está de pé, à Dele. Usa vestido largo e pés descalços. Seu corpo pende para frente, o peito esticado deslocando o centro de equilíbrio. Quase desaba, e volta ao eixo. Como seu estomago, o corpo todo parece estar em alto mar. Nenhum sinal de cais nos olhos dele. Olhos fixos nele.
Estão em um longo corredor de pé direito altíssimo. Suas respirações fazem eco ao longo do espaço, que parece não ter fim. a cadeira está centralizada entre as duas retas paralelas que definem o espaço.
Muitas janelas se espalham no comprimento. Janelas abertas e altas, arregaçadas, deixam que o vento penetre.
Fim de tarde. O céu é branco. Há algumas arvores e matos do lado de fora, mas nenhum som. A luminosidade leitosa invade a cena, nos lugares específicos das janelas, e iluminam o chão quadriculado, de mármore, preto e branco.
Faz frio.



Ela se pronuncia, de súbito, como num susto. Fala baixo e rasgado. As palavras diretas cortam o ar na direção Dele:

-um vento passou frio pela gente. Por que você não me abraça?
Ele, imóvel - por que você não me abraça?
Ela, imóvel -eu estou com frio.
Ele, imóvel - eu estou com frio.

Ela avança no espaço, em linha reta. Ajoelha diante dele e o abraça.

Ele - nossos calores se misturarão e quando eu virar minhas costas para ir embora eu não vou mais saber o calor que é teu e o calor que é meu. Eu vou sentir ainda mais frio do que eu sentia, e terei de voltar aqui, para pegar o resto do meu calor, que ficou com você.

Ela - e eu terei de negar, pois um pouco desse calor entre nossos corpos, metade dele, é meu. E sem ele, eu não vivo.

Ele -não quero que morra.
Ela -sou eu ou você.
Ele -então é melhor não abraçar.

Ele a afasta.

- eu tenho que ir.

Ele se levanta, se vira e anda na direção oposta.

Ela fica ajoelhada. O corpo pendendo sobre os joelhos, já roxos.

Ela grita - você...

Ele pára

Ela continua, suave - você me abraçou. E eu estou sentindo frio e você está indo embora. Eu vou morrer.

Ele faz silencio.

Ela se levanta. Passa a mão sobre o joelho esfolado. Olhos fixos nele.
- eu não me importo, se você guardar ele só pra você.

Ele -calor se dissipa. É sugado pelo mundo. Esse aqui vai durar até a esquina.

Ela - mas você não vai morrer.

Ele -não. Nem você vai morrer.você gosta de dizer que vai morrer pras coisas parecerem mais fáceis. Pra fingir que tudo vai acabar e você não vai mais sentir dor. Você diz isso pra eu pensar que você está num estado terminal e que não pode viver sem mim, e assim eu fico amarrado a você, porque eu não quero que você morra.

Ela -é uma metáfora.

Ele -eu não quero que você morra nem metaforicamente.

Ele balança despretensiosamente o martelo em uma das mãos. Lentamente vai virando para continuar sua caminhada ao outro lado extremo do corredor. Agora ele está em frente a uma janela. Caminha mais. Passos largos. Olhando pros pés que vem e vão lá em baixo. Uma sombra recaiu sobre as partes do corredor protegidas por paredes. Ele anda, e entra novamente em uma área luminosa, azulada, quando:


Ela -então você me ama.
Ele, pára e volta-se para ela -amo sim.
Ela -então me abraça que eu to com frio.
Ele -eu não quero que você morra.
Ela -eu não vou morrer.
Ele -então eu não preciso te abraçar.
Ela -não, mas você quer.
Ele -na verdade, é você quem quer.
Ela - isso. Você está certo.

Ele se vira.

Ela - eu vou morrer se você não me abraçar agora.
Ele - não, não vai. Já conversamos sobre isso e nós dois entendemos que você não vai morrer. Eu estou indo embora.
Ela -eu vou morrer se você não me abraçar agora.
Ele -olha, não seja assim. Assim é ruim. Você mente. Você sabe que mente o tempo todo, eu não posso mais lidar com as suas mentiras. Você mesma disse que não ia morrer, eu não acredito em você. Você quer que eu a abrace. Você é mimada. Querer não é uma questão tão decisiva.
Ela - eu vou morrer.
Ele - me diga a diferença exata entre o abraço e o não abraço, de forma que ela explique a sua possível morte.
Ela - eu não sei explicar. Tem uma coisa quebrada dentro de mim, só você pode me salvar. Se você for embora alguma coisa vai acontecer. Não é mentira. Você tem que acreditar em mim. É sério. Eu não minto mais.
Ele - eu vou embora agora e vou te ligar amanha pra saber se você morreu.
Ela - você vai me ligar amanha?
Ele -vou,pra saber se você morreu.
Ela - e se eu não tiver morrido?
Ele -ai eu posso constatar que você é mentirosa.
Ela - assim você vai me levar ao suicídio.
Ele -achei que você fosse morrer por que alguma coisa ia acontecer, porque tem alguma coisa quebrada dentro de você, não que você fosse se matar. Você vai se matar só pra provar pra mim que você ia morrer?
Ela -claro que não. Não é uma prova, fabricada por mim, é um fato, um acontecimento atrelado à sua ausência nesse momento de agora, que se desenrolará na minha morte.
Ele -suicídio. Isso é ridículo.

Ele está enraivecido. Decide-se a andar novamente embora dali, quando:

Ela – ( chora e cai no chão sem ar. Grita) FICA COMIGO POR FAVOR. ME ABRAÇA.

Agora eles estão bem longe um do outro. Suas vozes são projetadas. A luz já caiu pela metade e estão conversando na penumbra.

Ele -não.
Ela -é questão de vida ou morte.
Ele - não importa. Eu vou embora.
Ela - você não me ama.
Ele -eu não te amo mais.
Ela- desde quando?
Ele -desde que você apelou pro “por favor” e começou a me tratar como um viciado trata a sua droga.
Ela - eu te amo. Não me deixa aqui. Me leva com você.
Ele - eu estou indo pro inferno.
Ela -não importa.

Ele faz o caminho de volta em um andar muito rápido e visivelmente agressivo. Ele pára bem junto dela, a pega pelo rosto e a põe de pé.ele põe o martelo no chão, para não machucá-la. Depois a empurra para trás.
Essa parte da conversa é feita com os dois corpos bem juntos.


-eu não vou te levar a lugar nenhum. Levanta. Olha pra mim feito gente. Limpa essa cara, garota.

Ela -você vai se arrepender.
Ele -porque?
Ela -porque eu vou te matar.
Ele -então você não me ama.
Ela - não te amo mais.
Ele -desde quando?
Ela -desde que você recusou-me ajuda, quando eu estava aos teus pés, implorando.
Você não tem coração.
Ele - não. Ele está com você, em algum lugar do seu armário, junto com as suas outras drogas.
Ela -sim, ele está lá. Enrolado num casaco, batendo e sangrando ainda.
Ele -então a culpa de você não me amar é toda sua. Eu não tenho nada a ver com isso.
Ela -e qual é a diferença?
Ele -a diferença é que, se a culpa é sua, então o problema não está comigo e sim com você. Outras pessoas ainda podem me amar.
Ela -ninguém ama alguém não ama de volta.
Ele - você ama.
Ela -não amo mais.

Ela se abaixa e pega o martelo que ele deixou no chão. Ela balança o martelo despretensiosamente nas mãos, grandes, de unhas ruídas, firmes.

Ela – e como é que você quer morrer?
Ele- eu não vou morrer. Ninguém aqui vai morrer.
Ela – (pensando em como matá-lo, se distrai e desvia pela primeira vez seu olhar dos olhos dele. Dá pequenas marteladas na mão esquerda) quer responder, por favor? Está ficando escuro. Quanto mais escuro, mais sinistro.
Ele – não se preocupe, eu estou indo embora.
Ela – quanto mais escuro, mais sinistro.

Os dois ficam se olhando até a luz se perecer completamente.
Escutamos uma queda de corpo. Minutos depois, escutamos a cadeira enferrujada cair com violência no chão.

A luz de uma manha nublada se ascende pelas janelas grande e altas.
O corpo Dele está caído, encolhido entre o chão e parede; o corpo dela está pendurado pelo pescoço, nos fios de eletricidade do lugar. O corpo balança, empurrado pelo vento frio do outro dia.