Entre o vermelho e o amarelo daquelas linhas, havia um sorriso tímido escrito. Ana nunca havia o percebido ali, assim, sem querer se pronunciar. Mas dessa vez lá estava ele. Rico e rindo bem alto. “ e se eu o pudesse tocar?” ela pensou calada.
Ana não sabia de muita coisa naquela noite. Era como se uma grande borracha azul tivesse passado asperamente entre seus olhos e tudo, definitivamente tudo, tivesse sumido. Ela não queria, nunca mais, voltar a lembrar de nada.
Lá fora a noite rugia como um leão faminto. As luzes todas se agitavam sozinhas. Balançavam.E a cerveja quente do chão parecia evaporar sob o calor do vento a raspar nas poças de sujeira e fome e desilusão que enlamaçavam a cidade inteira. Era tudo muito detestável. Mas não importava mais. Até o enjôo havia sumido. E tinha aquele sorriso, ali bem na frente de nada, a sorrir para o nada, com sua benevolência inacreditável que só os anjos possuem. Ela teria dito “olá”, se seus pensamentos não vagueassem tanto pelo nada pacifico. O oceano a chamava amanteigadamente, aquelas águas eram calmas e mornas, ela sabia. E o cheiro da maresia abençoada pelas estrelas. Ana sonhava com as estrelas. Enfim, Ana sonhava com as estrelas e com o mar e com toda aquela imensidão debaixo dela e do seu corpo calmo adormecido sobre a palma da mão do universo. Era só o que existia. Porque seu corpo tão facilmente se cansava de andar vestido, e ter de defecar em uma louça branca e falsamente esterilizada, e ter, enfim, ter de estar aqui, assim, e gesticular e se comunicar o tempo todo de uma forma que só a fazia se sentir incompreendida e infeliz. Tinha alguma coisa muito importante por trás do que todos chamavam de vida, algo importante como aquele sorriso que lhe sorria agora. Era inevitável prosseguir até achar o extrato do que é, a única coisa que pode ser e que sempre foi. Era inevitável abandonar aquelas horas, aquelas antigas e perpetuas horas. Ana estava indo embora. Finalmente, Ana estava indo embora dali.
Deitada no sofá -eu sei disso, que Ana estava deitada no sofá do lugarzinho amontoado de pedaços de pessoas, envolta no bafo que saia daquelas paredes- ela fechou os olhos e se deixou cair em um profundo delírio de imagens e sons. Ela pensou que assim seria, que seria assim que a verdade se mostraria um minuto antes de sua morte. Um sorriso -aquele sorriso do quadro da baleia e das arvores, o tal sorriso que havia sorrido à Ana minutos antes de seus olhos se fecharem- veio se abrir entre os lábios doces da menina. Seus olhos delicadamente adormecidos se franziram repentinamente numa contorção gentil, e Ana riu. Gargalhou. Ate perder o ar.
Do outro lado da sala, de pernas cruzadas sobre o tapete florido, ele a observava. Ele tentava sugar o hálito de Ana para recolher um pouco da alma da menina dentro de sua alma. Era a paz. Ana era a sua paz. Ana era o que lhe restava de verdade dentro de seu peito. E agora ela estava sorrindo, gargalhando, expulsando com explosões de alegria pura o ar quente de seus pulmões e isso o fazia também sorrir. Sem gargalhar, mas ainda assim sorrir. Ele fechou também os olhos. Seus dedos, entre as cordas firmes de um violão partido ao meio, dançaram um baile suave, como seus antepassados, no dia do divorcio do céu e da terra. A melodia invadiu o lugar. E ele chorou como uma criança que acaba de perceber que está perdida em um bosque seco, longe de casa.