Ontem eu era maior que hoje. Eu era mais forte, tinha mais
dentes. Hoje tenho apenas um dente. Tenho unhas frágeis, cabelos escassos, uma
perna pela metade, uma mão com três dedos, um coração que bate vez ou outra, e muito
forte. Hoje quase não tenho ar. Acho que morrer é assim como sou eu hoje. Hoje eu
morro e não tenho saudade do que deixo para trás. Hoje eu permaneço, fico,
apodreço, em qualquer esquina, no pé de qualquer árvore urbana, totalmente indiferente
ao rosto dos meus conhecidos, amigos, queridos. Familiares, seqüestradores,
saqueadores, críticos de arte, curadores, empregadores, terapeutas, xamãs,
donas de casa, domésticas, jornaleiros, porteiros e caixas de supermercado.
É quarta-feira. A praia
ainda está lá, sem o menor desejo de mim. A lua vai sair, é verão de novo e não
existe amanha. O verão sempre traz a morte em mim.
Dois dias atrás eu queria ter filhos, marido, emprego, um
carro. Plantar um abacateiro. Facilitar processos grupais. Amar. Ser amada.
Hoje eu lido apenas com a morte.
Fogueira nenhuma. A imagem
de uma fênix na parede me lembra uma lenda antiga que não é contada há muito
tempo. Serão muitas horas, muitos dias meses anos de escuridão e amargo. Deve ser
assim a morte. Escura e amarga, com olhos abertos fitando o lado de dentro da
porta de um armário. Sem agenda. Sem sinal. Sem emprego. Sem função.
A cidade da morte pulula o interior do meu corpo. Tantos fantasmas
que ficam aqui dentro só olhando: a sala vazia e tediosa que sou eu. A rede
globo e suas vinhetas acusando a imensa, infinita repetição dos dias. Eu escuto
o sinal dos intervalos na televisão dos bares, de tarde, quase vazios.