10 de janeiro de 2018

MORTE



Ontem eu era maior que hoje. Eu era mais forte, tinha mais dentes. Hoje tenho apenas um dente. Tenho unhas frágeis, cabelos escassos, uma perna pela metade, uma mão com três dedos, um coração que bate vez ou outra, e muito forte. Hoje quase não tenho ar. Acho que morrer é assim como sou eu hoje. Hoje eu morro e não tenho saudade do que deixo para trás. Hoje eu permaneço, fico, apodreço, em qualquer esquina, no pé de qualquer árvore urbana, totalmente indiferente ao rosto dos meus conhecidos, amigos, queridos. Familiares, seqüestradores, saqueadores, críticos de arte, curadores, empregadores, terapeutas, xamãs, donas de casa, domésticas, jornaleiros, porteiros e caixas de supermercado.
 É quarta-feira. A praia ainda está lá, sem o menor desejo de mim. A lua vai sair, é verão de novo e não existe amanha. O verão sempre traz a morte em mim.
Dois dias atrás eu queria ter filhos, marido, emprego, um carro. Plantar um abacateiro. Facilitar processos grupais. Amar. Ser amada.
Hoje eu lido apenas com a morte.
 Fogueira nenhuma. A imagem de uma fênix na parede me lembra uma lenda antiga que não é contada há muito tempo. Serão muitas horas, muitos dias meses anos de escuridão e amargo. Deve ser assim a morte. Escura e amarga, com olhos abertos fitando o lado de dentro da porta de um armário. Sem agenda. Sem sinal. Sem emprego. Sem função.
A cidade da morte pulula o interior do meu corpo. Tantos fantasmas que ficam aqui dentro só olhando: a sala vazia e tediosa que sou eu. A rede globo e suas vinhetas acusando a imensa, infinita repetição dos dias. Eu escuto o sinal dos intervalos na televisão dos bares, de tarde, quase vazios.