4 de janeiro de 2007

sistema nervoso central

“Posto de gasolina que brilha no fim da estrada em contraste com o céu negro azulado, banhado pela brisa fresca da noite sem dono da grande cidade bolha em que você está agora. Corra. Cigarro queimado até o filtro com cheiro de revolver recém disparado com lama de pólvora nos pés e tênis mal amarrado. Corra. Gasolina desperdiçada nos tanques dos carros que não vão a lugar nenhum que não aos seus próprios corações despedaçados. Amigos de mentira que servem para te falarem sobre as possibilidades falsas do próximo ano imutável. Corra. Balas de leite grudadas no ultimo dente, estomago fermentado e mãos fedidas enfiadas nos bolsos cheios de nada. Folha viva que cai do topo da arvore enegrecida pela fuligem que arde bem nas suas narinas. Corra. Ardor de peito, de mente. Corte profundo na palma da sua mão e então um destino incerto. Crucificação globalizada e ritmada a cada dia. Corra. Banheiros públicos tem cheiro da alma humana. Corra. Asfalto quente, sol a pino, maresia e ferrugem numa praia cheia de corujas cegas que voam desesperadamente para o horizonte de seus sonhos. Corra.”

Era assim que ele pensava enquanto dava seus passos lentos em direção a escola cinzenta as sete da manha de qualquer dia da semana. Estava frio o suficiente para usar casacos. Ele adora casacos. São entes quentes em um lugar de mãos e olhos frios. Nem Ana poderia aquecê-lo agora, mas os casacos eram bons.

Naquela parte da rua o sol era sempre poente, mesmo quando nascia.

-“corra”- ele pensava.- “corra, já”

2 de janeiro de 2007

O Remetente Desconhecido

Ele preferiu não assinar. A carta em si já era uma assinatura de muitos nomes. Apenas ele mesmo escreveria à Ana daquela forma, ele sabia disso.

Colocou o ultimo ponto. Papel de pontas amassadas, letras confusas, frases sem ponto, falta de data. Uma carta escrita para Ana! E tão diferente desses telegramas importantes, mas ainda assim uma carta para Ana! Que ótimo!

O garoto levantou da pequena cadeira de madeira que o colocava confortavelmente sentado junto à mesa. Suas longas pernas haviam ficado esmagadas debaixo da mesa durante todo o seu longo tempo de escrita, e agora os joelhos estalariam em agradecimento pela nova posição em que foram colocados. A mesa ocupava metade do espaço disponível no cômodo da casa que o sujeito que a vendera intitulara “sala de jantar-cozinha”. O teto era baixo, o que parecia manter o ar do lugar sempre quente, como em um ninho. Apesar disso, definitivamente, aquilo não era um ninho. Pelo menos para ele, aquilo não era um ninho.

Estalando as costas e os dedos o garoto alongou o olhar para a garrafa de vinho sobre a pia que abençoava a parede do outro extremo do cômodo com um incrível ar envelhecido. Sobre a pia, estendia-se uma janela de madeira pouco talhada e torta. Do lado de fora estava todo o resto do mundo, emoldurado pelas irregularidades da janela da casa velha.

- é isso.- pensou- a carta está pronta.

Anoitecia lá fora e o vento que limpa o deserto dele mesmo já trabalhava.

- isso tudo é muito lindo, não é mesmo?!- falou para as paredes, entre dentes, em um sorriso cerrado. Aquele era um de seus momentos, talvez o mais lindo de toda a sua vida. Naquele coração jovem e pesado, como em todos os outros, o mundo explodia. E então era fácil sorrir.tao facil sorrir naquele momento. Mas, Ana... Ora... Ana não sorria mais! O que faltava a Ana para sorrir? Ele queria tanto que Ana sorrisse. Ele queria tanto abraçar Ana. Mas Ana não estava lá. E não adiantava o que fizesse, Ana não estaria lá. Talvez Ana nunca fosse estar.

Arrancou a rolha com os dentes. Cuspiu na pia e limpou os lábios com a manga da camisa. O primeiro gole foi seco e amargo, como sempre. O primeiro gole de qualquer coisa sempre se mostra seco e amargo, como o primeiro suspiro no mundo, quando seus pulmoes se desgrudam e você berra com sua boca sem dentes e aperta ainda mais seus olhos de recem-nascido .
Logo o vinho escorria pela garganta arranhada de cigarro e de gritos da noite passada.

Pegou novamente a carta nas mãos. Olhava com tanta atenção para aquelas palavras que parecia querer criar algum tipo de telepatia. – Nossa.- pensou- O que faço eu por Ana!

Ele havia passado a noite procurando por Ana. Suas gargalhadas doces o mostraram o caminho, longo e tortuoso, sem fim. Os galhos cortaram seu rosto e seu peito, desenhando a pele com filetes de sangue seco, o que criou um certo alarde na cidade durante o caminho de volta pra casa. Mas apesar da dor fina ele não desistiu. Correu como não corria há anos, fechou os olhos e se foi entre os galho secos e as folhas mortas aos montes sob os pés descalços. Deixou sua alma correr para Ana, e sorriu tão largamente que parecia traduzir a gratidão do mundo por si mesmo apenas no espaço que ocupava a sua boca. Gritou por Ana tanto, sorriu por Ana tanto e descreveu atenciosamente como o céu estava naquela noite. E debaixo da lua enorme, ele adormeceu. Dormiu enquanto falava com Ana, e respirava o ar gelado e úmido. O fato de Ana não ter aparecido durante toda noite, e não o ter abraçado, e não o ter tocado, não o incomodou.

Acordou como sol que brilhava timidamente encoberto pelas nuvens do outono bem em cima da sua cabeça. Lavou os pés no rio que corria alí, perto da ruina de seus sonhos. Quando amanhecia Ana parava de gargalhar e desaparecia na chamada "memoria falha da noite passada". Mesmo assim, ele queria Ana, de todas as formas, mesmo não existindo.

Mas agora, agora, Ana não estava lá, e depois que a noite se deitou completamente sobre a cidade isso começou a pesar.