23 de março de 2009

Ela fez um café pela manhã. Choveu sobre a casa durante toda a madrugada. E o Fernando Pessoa repousado sobre a estante - servindo de superfície para as poeiras dos amanhas já incontestáveis- fitava-a de canto de olho, e sorria de ironia.

No passado pensara em morrer, mas foi um plano frustrado. Virou palhaça ou algo assim.

Suspirou como se gritasse a um amigo agora distante: -“o que vê daí? Você me vê?”, o ‘e’ se alongando pelo ar, pousando por fim numa grama úmida. Ela sentiu saudades agudas. O coração já almofadado, por precaução, parecia não responder. O sentimento ficou preso lá, se debatendo por alguns momentos. Acredito que tenha adormecido em seguida, para depois vir novamente despertar para saudar uma outra manhã cinza.

O que ontem foi um pranto hoje era só silencio. A casa respondia com seus ruídos carinhosos.

Há tempos não completava uma frase sem que antes pudesse julgá-la imoral ou terrivelmente idiota. Essas coisas acontecem com os jovens, creio. Mas é uma fase. Em breve ela poderá dizer o que for sem se repreender – o que não significa que serão frases menos imorais ou idiotas.

Mas havia algo nessa garota – Ana, seu nome- que se parecia com uma total inabilidade de fazer o que todo Homem se deve: desfrutar. Deixar a vida banhar a pele.

E lá estava ela. Suas manhãs atordoadas pelo porvir do dia que só de sua vontade dependia, mas ela nada queria.

Queria assim, para dizer às amigas que queria isso ou aquilo, afinal todos querem sem importar o quê. Mas quando estava a sós consigo, quando fechava os olhos para procurar-se, ela tremia de pavor e agonia ao ouvir apenas os ruídos da casa.

É isso que se chama solidão. Estava ela sozinha de si. Não podia contar-se no mundo. Não era dela aquele lugar ou aquele corpo. Uma estrangeira. Uma ladra. Era isso o que era, com seu café trêmulo, com a agonia do Estar. Não queria. Não queria tanto quanto uma criança não quer comer feijão com arroz.

(Eu não sei dar nome às coisas. Não sei manter contato. Não sei ser o meu caminho e outro caminho eu não quero.

O que pensa você do que digo?

Porque quando se sobe alto no avião indo para outro sentido, o coração fica amarrado na terra, e puxa o peito pra baixo, dá falta de ar. Não é mesmo mentira. E nem saudade dos outros. É medo de não se reencontrar quando descer nesse outro lugar.

Eu não encontro o caminho e assim a minha energia se acaba. Vivo pedaço de lixo no canto de algum lugar. Esquecido. Mas eu não quero.

Eu mandei a Ana ir embora. Ela está muito longe de mim agora. Talvez ela tenha roubado meu caminho, guardado ele em sua mochila azul. Ou fumado ele, dentro dos cigarros com gosto de isso e aquilo que ela botava pra dentro como bala.

Essa cleptomaníaca roubou o meu canal de comunicação comigo mesmo. Roubou minhas palavras mais sinceras, mais intimas e mais doídas. Ela tinha tudo isso na bolsa que usava quando eu a olhei bem fundo nos seus olhos e disse: “Você é um sonho, sua escrota. Você não é real. Pare de me confundir.” Ela riu. Achou graça. Riu docemente e ajeitou os cabelos para trás das orelhas. Quando pude encontrar novamente seus olhos, eu gritei: “ Vai embora. Agora.”

E ela foi.

Calçou as botas, acendeu um cigarro e soltou a baforada em direção ao teto. Eu me virei um instante para pegar as chaves da casa e quando retornei... a fumaça descia lentamente e empestava o quarto com aquele cheiro, criava uma cortina envolta das lâmpadas do lustre, e,é claro, em três segundos a porta da casa batera. A porta do inferno que se abre para as almas de passe livre e depois se fecha novamente, para o resto apodrecer lá dentro.

Eu pude imaginar ela ganhando as ruas com suas longas pernas, passos largos e retos que dissimulam sua total falta de noção do caminho a seguir.)

Ana não queria comer feijão com arroz, então tomava o café.

4 de março de 2009


Aconchegante de uma forma doente mas não doentiamente aconchegante. Pintura de quarto é meta linguagem. Radiografia da continuidade habitual, naquele instante parada, sufocada, pois o tempo-ritmo se perdeu. Houve um rombo entre o lençol e a coberta que se demonstrou um caminho para o infinito de memórias tediosas.
Os nossos pais debruçados sobre nós, e nós de olhos fechados, sentindo o peso dos olhares.
O quadro no quadro retrata o segundo preciso do agora lá. O segundo preciso do agora aqui não tem nada a ver, apesar de ser o mesmo, em algum nível de consciência entre planos.
Cama bloqueando a porta é sintoma de auto repressão e acuamento perante o mundo. Insegurança. Entende, Van Gogh? Você precisa de um acompanhamento psicológico, senão psiquiátrico. Além disso, você tem esse olhar sinistro. E é ruivo.