18 de maio de 2010

A doença da morte

«Deverias não a conhecer e tê-la encontrado por toda a parte ao mesmo tempo, num hotel, numa rua, num comboio, num bar, num livro, num filme, dentro de ti, em ti, ao acaso do teu sexo erguido na noite que procura um lugar onde se meter, onde se libertar do choro que o enche.
(...)
Às vezes andas no quarto à volta da ama ou ao longo das paredes ao lado do mar.
Às vezes choras.
Às vezes sais para o terraço ao frio que começa.
Não sabes o que contém o sono daquela que está na cama.
Tu, daquele corpo, querias partir, querias voltar a outros corpos, ao teu corpo, voltar a ti mesmo e ao mesmo tempo é por teres de fazer isso que choras.
(...)
Acorda. Olha para ti. Diz: A doença avança cada vez mais em si, está nos seus olhos, na sua boca.
Tu perguntas: Que doença?
Ela diz que ainda não sabe dizer.
(...)
Ela estaria sempre pronta, com ou sem vontade. Precisamente sobre esse ponto nunca poderias saber nada. Ela é mais misteriosa do que todas as evidências exteriores que até ali conheceste.
Também nunca poderás saber nada, nem tu nem ninguém, nunca, do modo como ela vê, como ela pensa sobre o mundo e sobre ti, o teu corpo e o teu espírito, e essa doença que na opinião dela te atingiu.
(...)

Vais acordá-la. Perguntas-lhe se é uma prostituta. Ela faz sinal que não.
Perguntas-lhe porque aceitou o contrato das noites pagas.
Ela responde com uma voz ainda adormecida, quase inaudível: Porque logo que me falou, vi que estava doente, com doença da morte. Durante os primeiros dias eu não fui capaz de dar um nome a essa doença. E depois fui capaz.
(...)

Perguntas-lhe: A doença da morte é mortal em quê? Ela responde: É nisto de quem está doente não saber que a transporta em si, à morte. E também nisto de se vir a morrer sem uma vida prévia de que morrer, sem conhecimento algum de morrer de nenhuma vida.
(...)


Regressas ao terraço em frente ao mar negro.
Há em ti soluços e não sabes porquê. Estão suspensos de ti como se te fossem exteriores, não podem juntar-se a ti para que os chores. Face ao mar negro, encostado à parede do quarto onde ela dorme, choras por ti como o faria um desconhecido.
(...)

Descobres que é ali, dentro dela, que se fomenta a doença da morte, que é essa forma perante ti estendida que decreta a doença da morte.
(...)

Tu choras.

O choro acorda-a. Olha para ti. Olha para o quarto. E olha novamente para ti. Acaricia-te a mão. Pergunta: Porque é que chora? Tu dizes que ela é que tem de dizer porque é que choras, que ela é que deveria sabê-lo.
Ela responde muito baixo, docemente: Porque não ama. Tu respondes que é isso.
Ela pede-te que lhe digas isso claramente.
Dizes: u não amo.
Ela diz: Nunca?
Tu dizes: Nunca.
Ela diz: O desejo de estar quase a matar um amante, de o guardar para si, para si apenas, de se apoderar dele, de o roubar contra todas as leis, contra todos os impérios da moral, não conhece esse desejo, nunca conheceu?
Dizes: Nunca.
Olha para ti, repete: É curioso, um morto.
(...)

Um dia ela já ali não está. Acordas e ela já ali não está. Partiu de noite. A marca do corpo ainda está nos lençóis, está fria. (...)
Não há mais nada no quarto, só tu. O corpo dela desapareceu. A diferença entre tu e ela confirma-se pela sua repentina ausência.
Ao longe, nas praias, gaivotas gritariam na escuridão a acabar, começariam já a alimentar-se do vermes do lodo a remexer nas areias que a maré baixa abandonou. No escuro, o grito louco das gaivotas esfomeadas, parece-te de repente que nunca o ouviste.


Ela não voltaria nunca.
Nessa noite em que partiu, num bar, contas a história. Primeiro como se fosse possível Fazê-lo, e depois desistes.
(...)

Quando choraste, foi só por ti e não pela admirável impossibilidade de te juntares a ela através da diferença que vos separa.

De toda a história reténs apenas determinadas palavras que ela disse no sono, essas palavras dizem aquilo que te atingiu: Doença da morte.
Depressa desistes, deixas de a procurar, nem na cidade, bem na noite, nem no dia.
No entanto, assim pudeste viver este amor da única maneira possível para ti, perdendo-o antes que acontecesse.»

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