8 de outubro de 2013

antiqua



A escrita tem o tempo urgente. Precipitação instantânea desse orvalho mental, amorfo, denso. E eu acredito que ela pode me salvar. A linguagem pode me salvar. Por isso escrevo. E sempre que escrevo preciso definir seu motivo, seu destino, sua função. E ultimamente tenho gana de rimar, a coisa que acho mais brega. é convivência. Tenho muito medo do costume porque minha alma é naturalmente obediente. Se as hastes não me agradam eu fico é triste e só. Invejo os olhos rebeldes, os espíritos atenciosos, denunciativos. E no entanto, me envolvo sempre com o indizível e o que me faz ainda mais plasma. Porque dizer é o que dá o contorno e ei já nasci borrada, amo a borra, gosto do incompletamente dessignificado, antes, o pré, o tal orvalho.

Ontem havia um homem.  Não quero descrevê-lo. Havia ele na minha frente como uma promessa de uma vida paralela, cheia de sentido só pra mim. Ontem havia um homem. Hoje a casa é habitada por fantasmas femininos. Mas como fui tola em não perceber que atrás de um pai sempre existe uma mãe deprimida.

E no meio de tudo isso eu me lastimo da minha indefinição. Houve um instante em que eu fui menina, de rosa, de fralda, querendo aquele entre-pernas cabeludo. Já está realizado, pronto, em quase cada cama que me deito. Que susto dizer isso. Mas o pai já se foi, restam os estudos financeiros para comprar um computador, para comprar aquele livro que desvendará o sentido.  

Que mal que é esse dia em que me confronto com minha forma. Tomo 5 banhos, fazendo escorrer uma graxa, na esperança de que ela me revele a estampa que é minha finalmente  e eu não sabia. Mas minha pele cisma em se esfarelar.
É uma tremenda falta de assunto.  É uma tremenda falta. De assunto. Falar de pele e de pai. como se essa. Fosse a única. (e é). Linguagem possível. Para um ser humano como eu.

Eu me lembro de ter saído de uma enfermaria. Eu fui parar lá porque tinha mergulhado num poço de águas muito escuras, um poço escuro, cheio de folhas mortas das arvores que cobriam esse poço. E eu me lembro que a água era gelada e, quando eu mergulhava, eu tinha memórias muito intensas, de uma cidade que eu nunca vi, de uma menina de camisolas que eu nunca vi, de uma tarde se pondo no tapete da sala da minha casa, de uma estrada beira-mar, coisas desse tipo. Pois depois que eu mergulhei e lá fiquei, porque pensei demais nas lembranças, tanto que não consegui me concentrar em nadar e respirar. E quando eu pensei que eu já tinha morrido, lá embaixo do poço, misturada na sedimentação das folhas dessas árvores de cima, aí me pegaram de lá debaixo. E quando eu voltei pro chão – espalmei minhas costas naquela pedra molhada cheia de terra – e olhei pro céu, eu percebi que eu não podia mais sorrir, e que alguma coisa tinha acontecido que eu não entendia mais as coisas que as pessoas falavam, e parei de sentir também a direção da vida dentro de mim – o que se chamamos de desejo.
Foi então que eu fui parar na enfermaria.

E la na enfermaria aconteceu aquilo tudo – das horas, das roupas, das escolhas sem sentido e de suas importâncias, do sapato amarrado, da comida, da sequencia. Principalmente da sequencia das coisas, que uma coisa levaria a outra e que era por isso que eu precisava ficar acordada. Enfim. Um monte de coisas que hoje eu posso dizer que eu não sei aonde foram parar.

Mas o fato é eu fiquei muito tempo lá de forma que eu acabei de refazendo – andando mesmo, dando sequencia. Apesar de eu nunca ter esquecido que muitas, muitas coisas mesmo não tem sequencia e não é por isso que elas não existem.

E então eu fiz tudo como tinha que ser, mas uma coisa não aconteceu mais. As lembranças deixaram de vir. 

Eu entendo hoje como uma obliteração da presença íntima. Não é mais possível narrar minha vida como eu antes fazia. E é aqui que eu queria chegar – que não é mais possivel pra mim narrar a minha vida.
E o que isso significa, na pratica, é que quando eu não posso narrar a minha vida, em primeiro lugar, a linguagem esmorece. Eu tento resgatar e esse é meu caminho narrado. Nessa extrema necessidade e dificuldade.
  
  

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