Por enquanto está
bem assim – disse, constatando latitude, longitude e presença do
próprio corpo. Aqui está bem, não esta frio nem quente, nem
barulhente nem morbidamente silencioso, nem melancolico nem euforico,
nem fome nem enjoo. Olhou para o céu de azul infinito. Lembrou
albatroz sobre o mar que estava ali em algum lugar (graças a deus).
Pensou verão de uns 12 anos atrás, do cheiro da casa do amigo,
Raoni, que sempre a deixava triste, da piscina do amigo que sempre a
deixava triste, e da incapacidade do peito do amigo que, apesar de
bem grande, não podia acolher toda aquela tristeza. A casa sobre a
colina, alto lebron, os móveis e quadros de revista, todos os
comodos vazios exceto pelo dele, onde ela estava. Agora está bem
melhor que 12 verões atrás. A jovialidade sempre trouxe uma
proximidade bem perigosa com a morte. Agora, menos jovem. Agora,
menos morte. Agora, menos triste. Nessas horas a gente vê, como
diria já a grande Inês: o sangue de jesus tem poder, está amarrado
em nome de jesus, graças a deus deus existe. Amém.
Como foi que
sobrevivi ao chão? Como foi que sobrevivi ao meio fio? Às baratas
de botafogo? Ao conhaque em garrafaa plastica? Aos beatniks
tagarelantes nas mesas de cabeceira, dentro das mochilas, debaixo dos
braços nas praias a noite, nos onibus de viagem, nos escoderijos da
cidade? Lembrou a amiga, sempre ela, que apesar de por vezes raivosa,
indigesta, estivera ali sempre, segurando sua testa para tantos
vomitos convulsos. O sangue da amiga tem poder. Como naquele dia que
ambas bâbadas se esconderam em um caminhão com placa de são paulo.
Iriam para são paulo naquela noite, foram para são paulo por alguns
segundos. Pensaram são paulo. Pensaram sempre que não dava mais
para ficar. Durante tantos anos, a cada instante: não dava mais.
Seria o ultimo. O atropelamento à espreita, o remedio à espreita,
os cortes no banheiro, o impeto do fim. Estavamos mal, como
estavamos. Estavamos já no limite. Sobrevivi ao limite. Sobrevivi ao
que já não dava mais. Àquela doença não sei, de alma. À
tristeza da casa do amigo, à fuga cotidiana, ao sol inimigo que
sismava em acabar com todas as noites sem fim.
Éramos uma legião
nessa dor da juventude. Alguns mais assentados, outros mais
sangrentos, uns mais misterisos, outros mais arranhados. Foi uns nos
outros, caindo uns sobre os outros e sustentando uns aos outros, que
pudermos sobreviver ao chão. Éramos órfãos, devo dizer. Onde
estavam nossos pais?- é o que eu sempre penso quando penso em 12
verões atrás.
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