9 de julho de 2006

A sabedoria de Ray Smith

Barulhos secos. O cigarro queima, o copo range e paginas viram sozinhas com o vento. Enquanto isso, as folhas das arvores lá fora dizem apenas boa noite. Brisas mornas, dessa noite que se espalha com suavidade por todos os recantos, plena e grata.

Lá de longe se pode ouvir os gritos e cantos dos rituais indígenas que eu nunca vi, uma fogueira queima e madeira sagrada estala, corpos iluminados e abençoado, enquanto a noite se espalha tão incisiva e plena quanto os braços de uma mãe apaixonada por suas crias.

Algo se meche entre os galhos mais altos. Trinta corujas de olhos vivos despejam toda a sua sabedoria acumulada das suas muitas horas de vôo sobre as terras incendiadas das civilizações antigas e esturricadas. Lindos homens, mulheres e crianças, dizem as corujas. Lindas corujas, dizem homens, mulheres e crianças, e o mundo dança pelas veias de tudo que existe.

Ray abraçava seus joelhos e tentava aquecer seu sangue com o pouco de conhaque que restava na garrafa quebrada pela metade. Com a perspicácia de um deus consegue perceber cada som do mato, cada galho que estala embaixo dos cascos das mulas e cavalos. Um coelho ruivo de genes recessivos se encontra estático, aceitando interiormente a morte, enquanto a cobra coral o observa muda, imaginando as orgias do paladar.

Auto fagocitose do mundo, da vida e das pedras budas. Ray entende tudo, eu sei. E enquanto sua alma reza e paira sobre nossas cabeças, seu corpo adormece pálido, com um sorriso prematuro e desprovido de motivos no rosto.

Eu aqui experimento os sussurros do Rei Lagarto e alimento a minha devoção ao submundo norte americano dos anos 60, quando os jovens se debruçavam sobre algo mais do que um hambúrguer engordurado. Pobres estômagos contemporâneos. Pobres almas aceleradas.

Ray está morto, como deus, digo eu, mas temos sorte que ele tenha existido. Podemos ao menos carregá-lo no nosso bolso e sentir seu conhaque na nossa boca quando, por acaso, a vida desacelera e podemos estabelecer contato com tudo isso que paira sobre nossas cabeças apenas esperando que tenhamos a prudência de percebê-las.

Por agora, andamos por entre cabeças de porcos, respiramos fumaça, comemos demônios e passamos nosso tempo categorizando tudo que nossos olhares podem tangenciar. Somos o bruto e o sujo usando talheres. Somos o ventre dilacerado da Virgem Maria. Somos a impossibilidade, a implosão, somos rosas murchas, somos animais estéreis. Somos deuses embriagados, princesas presas em torres, dragões ferozes e príncipes encantados. Somos tapetes persas em leilão, somos o broto morto, a saliva de um cão, o escarro de um rei. Somos a mais pura pluralidade engarrafada.

E vamos explodir em mil pedaços de deuses.

Tudo o que sobrará no final será o Silêncio. Silêcio.silêncio.

Ray entende tudo, eu sei.

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