23 de julho de 2006

Tortuga

A não vida existente faz com que Tortuga também não exista. Não há ninguém para experimentá-la, prová-la, deixá-la escorrer entre os dedos. O perigo e o sal iminentes deixariam qualquer um maluco, sugaria qualquer ensaio de doçura ou de humanidade. Todos bichos, e só bichos desinteressados na realidade em Tortuga.

Em Tortuga
livramo-nos da dor de sermos homens, e ah, eu escorreria entre teus dedos e te conteria no fundo dos meus olhos, meu bem, sem escrúpulos e sem receios, para sempre, até alguma das mortes do mundo e o fim de qualquer coisa. Sem escrúpulos e sem receios em Tortuga. Uma liberdade nunca experimentada pelos homens de honra e de palavra e pelas moças de família e olhares tão doces que seriam incapazes de fazer mal a uma mosca perneta. Livremos-nos da honra e com ela, da hipocrisia, meu bem! Livremos-nos de qualquer mal que atormente e aflija as nossas vidas de exageros e dramas e lareiras que controlam o fogo-fato da nossa vida explosiva.

Sejamos mais em Tortuga. Sejamos a pólvora e a coragem, sejamos gatos selvagens, de olhos pintados e tranças nos cabelos. Brinquemos de colorir nossos corpos e fiquemos nus o dia inteiro!
O sol queimaria nossa pele de sapo e nos faria rajados e espertos, e o dia cederia em sangue á noite, e em um crepúsculo avermelhado, sentiríamos o gozo de sermos as estrelas que ainda estão por aparecer, lá em cima, no breu absoluto e dilacerador.
Escalando aquelas rochosas lá atrás, podemos ver bem mais que o infinito. Um barco desaparece ao longe, acenamos com sorrisos no rosto para as estátuas do bom costume que estão indo embora. -adeus! adeus!- repetimos, entrecortados por risadas eufóricas.
aprenderemos que as frutas apodrecidas não são menos gostosas e se soubermos respeitá-las, elas não fazem mal ao estômago. Deliciosas frutas e carnes de Tortuga! Nunca limparemos nossos rostos deles! Nunca limparemos nossos rostos da imoralidade! Nunca renegaríamos qualquer coisa que viesse de nós e do mundo!
Dormiríamos em paz, em Tortuga, como crianças. E como crianças contaríamos historias da época em que podíamos voar e respirar debaixo da água, assim nossos sonhos seriam adornados de visões de todos os ângulos possíveis do mundo.

Nos amaríamos tão intensamente na nossa insanidade! Nos amaríamos tão completamente que nada seria dito sobre isso, e no fim da tarde, cansados, encostaríamos as nossas cabeças uma na outra e adormeceríamos levemente. Sem escrúpulos, em Tortuga, só paixão. Sem amanhãs em Tortuga, sem horas, sem previsões. Nenhum medo da morte em Tortuga, sem prisões! Sejamos mais em Tortuga! Sejamos pólvora e gatos selvagens!

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