Nessa sua estabilidade forçada, eu sei que existe um abrigo. Abrigo confortável, desses que te esconde a qualquer custo da chuva e do vento forte do leste. E que apesar de te proporcionar muitos sorrisos e boas noites de sono, não a deixam vislumbrar a dor que eleva os homens ao seu maior estado de consciência e divindade. Você nunca vai saber como é acordar em tremores noturnos ou precisar de 5 cobertas para que seu corpo não se desfaça em milhões de pedacinhos, ou provar lagrimas amargas. Um sorriso pode ser mais ofensivo que uma bomba no café da manha, pois é desdenhoso a qualquer outra possibilidade de vida que não a sua própria. não sorria e baixe os olhos. É possível? É possível que reis e rainhas se juntem à plebe? É possível que espadas afiadas não cortem cabeças e guardem sua gloria para si mesmas? É possível que deus não subjugue lesmas? Lesmas... pobres lesmas que brilham apenas para os olhos de deus, para resgatar o seu olhar por ao menos um segundo. Elas se contorcem ali no mato, debaixo das bananeiras, e explodem-se em explosões coloridas e cintilantes por uma rápida aspiração de deus por seus corpos ridículos e moles. E depois choram, e depois morrem, em um segundo de perfeição, pois deus finalmente as olhou.
Quando a garota rala os joelhos e seus olhos enchem de água, o que você vê?
Vemos um lindo quadro, vemos uma inspiração de vida, vemos glóbulos brancos se amontoarem sob a pele rasgada, e por pura moralidade a oferecemos as nossas mãos ocas. Pois eu, não me deixando ser deus de ninguém, quero lamber suas lagrimas e o seu sangue, e engoli-los. É possível? É possível que a dor dos homens passe uns aos outros por osmose, não em compaixão, mas por razão nenhuma? É possível que senhores de engenho se submetam às chibatadas dos negros, chibatadas negras ?
O negro olha nos olhos do sr.barbudo e gordo, atrás da casa grande, acocorado em uma poça de lama. Ele lustrava seus sapatos e iria também selar seu cavalo. Mas naquela íris empobrecida pela idade, o negro vê. Ele vê toda a impossibilidade de vida do senhor, toda a intransigência das percepções, ele vê a ditadura da alma estagnada, e isso o amedronta. –ninguém sou eu além de eu mesmo.- ele não pensa pois não tem recursos para isso, porco burro que é, mas por ele penso eu. E todos nós vamos rumo ao farol. Eu, muito distante dos outros, em minha intenção de ingerir percepções que não as minhas. O garotinho faz recortes de jornal, e para que eu sinta as suas mãos tremulas de excitação preciso olhar de uma certa distancia e com bastante atenção. Seu corpo não pode interferir no meu e eu não posso me sentir presente pois isso estragaria tudo, e se ele cortasse o dedo, eu se fizesse uma linda montagem colorida e por isso ficasse feliz, eu não poderia cobrir seus pesares ou prazeres com a minha membrana. Ele não sabe que eu estou ali, claro, nem eu sei que estou ali. Ele não me olharia nos olhos e não entenderia que eu o entendo tal qual ele mesmo se entende. Pobre garoto, largado pelas lógicas matemáticas. Tinha três olhos o garoto, e só ele tinha. O pior é que nem foi vitima de Hiroshima e não era uma rosa muda como as que já tinham sido reconhecidas como um padrão de vida contemporâneo. O garoto tinha nascido assim e ponto, apenas, e por isso não tinha irmãos. Então vamos todos rumo ao farol. Todos se percebem, no intimo, como afrontas uns pros outros, e por isso existe uma repulsa de peles. Naquela família, que evoluiu dos macacos e de repente começou a segurar dados, o contato físico ficava cada vez mais escasso. Eles acreditavam amar um homem, nascido a 2.000 anos dali, no meio do planeta e debaixo do sol, e esse era o único contato físico que restava. As mulheres pensavam nele todos os minutos, inclusive durante o banho e debaixo das cobertas. Os homens pensavam nele todos os minutos, inclusive enquanto pensavam em mulheres. Ele era esse grande abrigo, que protege a qualquer custo da chuva e do vento frio do leste e que garante boas noites de sono. O único abrigo ao homem que se protege de si mesmo e que inveja os outros homens por não serem ele próprio.
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