15 de setembro de 2006

O Óbvio

Nesse momento de desordem, quando não se sabe nem ao menos pôr pé ante pé, as possibilidades são múltiplas e acabamos ficando perdidos no nosso próprio mundo de contemplação. Tudo se eleva e se faz real, um futuro possível, um presente vivo: o passo, a queda, o regresso ou a amputação voluntária das pernas. É tudo que poderíamos querer, é tudo que temos, momentos de desordem. Ardem no peito e varrem o mundo, as construções do centro da cidade estremecem e temos a impressão na pele de que, se nos fosse conveniente, derrubaríamos bastilhas. É tão obvio que nem atentamos pra isso. Passa desapercebido, como um passarinho machucado debaixo de uma arvore dançante, de galhos enfurecidos, de uivos de dor e miséria.

Foi em um desses momentos que então... o que houve? Foi em um desses momentos que, de repente, de corpos prostrados e imóveis... que, um dia, tivemos uma Idea:
“ e se engravatássemos porcos? E se leiloarmos as horas? E se fecharmos os olhos?” e ela se apossou dos nossos espíritos. Ficamos então com essas caras que conhecemos, de sonhadores da devassidão, de pervertidos pela vida. Nesse teatro desértico que se transformou as nossas vidas, as bocas gostavam de falar alto e de comer bastante gordura, os prazeres pulavam nos colos e incendiavam almas, tudo ardia, tudo deixava um cheiro acre no ar, toda a fuligem do submundo subira.
Os músicos todos resolveram fazer barulho: “ escuta! Escuta, meu filho, são os tambores de guerra.” E ele nunca mais saiu de casa. Ficou com medo da imagem grotesca que tinha construído de porcos engravatados errantes e dissimulados, que dentro de suas pastas de couro preto carregam uma foice para cortar a cabeça das crianças. As palavras ecoam na mente perturbada do garoto que mais tarde foi precisar de tratamento medico pois estava com anemia: não comia pois julgava que tudo era lixo, que viria perverter seu corpo de criança e sua inocência quanto a morte. “escuta, meu filho, são tambores de guerra.” E ele ouvia. Tum tum tum tum tum... e por aí ia... até a noite escura, quando o som se diluía nos sonhos de contos de fadas: belas meninas vinham desposar-lhe, e ele, sentado em seu trono real, negava migalhas às pessoas sujas que ficavam a porta de sua casa de ouro. Ele era o rei e cheirava a lavanda. O que pouco sabia é que, enquanto dormir, sua cara ensebada e seu ronco rudimentar o fazia assemelhar-se bastante com os suínos. Eu bem que tinha reparado! Pele rosada não pode enganar.
O pobre garoto não fazia nada. Apenas sonhava com seus dias de gloria em terras de paz e se mantinha limpo da sujeira do mundo. Não punha um dedo fora de casa desde que a guerra havia começado e era protegido pela moral burguesa típica - mas isso ele nem sabia pronunciar. “burguês? O que é burguês? Eles matam crianças como os porcos ou eles são mortos lá fora? São os burgueses que tocam os tambores? Ai que horror meu deus, os tambores!” e logo se esquecia daquelas esquisitices que em momentos de fraqueza entravam na sua pequena cabeça cheia de borboletas amarelas.

Ele não era deus.

Ele não era deus.

Tinha de saber isso. Tinha de saber que ele era um porco e que roncava de noite.

Mas ele nunca soube.

E ele morreu limpo.

Um comentário:

Anônimo disse...

"Eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata..."
(Drummond)


Saudade me deixa sem palavras... Drummond deve ter conhecido sua ultima encarnação quando escreveu essas palavras.

Te amo!