25 de março de 2011

pra lá

Tem um morro na frente da minha casa, depois de todas as casas que tem na frente dela. Atrás das casas, em algum lugar que eu não saberia dizer, até hoje, o quão distante está, estava o grande morro. Quase todo careca, uma pedra marrom escuro acizentada, chorona, e chegando ao topo, as fendas preenchidas com muito verde.


E me lembro de um dia ter olhado bem o morro, da janela da sala. Estava chovendo fino, e eu fiquei imaginando – com uma imaginação que me permitia sentir cheiros, toques e destinos dos lugares e das cosias – me imaginando lá em cima, sozinha.

Da janela da sala,o morro também me mirava, eu acho, e também me queria, tanto quando eu a ele. Só podia. Era uma força de atração que eu quase podia tocar. Porque o morro, na verdade, era o maior território seguro de dentro da minha cabeça. O resto estava sitiado por coisas mais agressivas, como uma ganância que eu nunca conheci igual pelas figurinhas dos álbuns que eu colecionava, ou as minhas duvidas sobre o pertencimento das roupas e penteados que eu usava na moda infanto-juvenil do meu bairro, ou até se eu tinha realmente amigos. Tudo falava muito alto durante todas as horas e os dias que se passavam, agora embaçados, pela minha infância. Mas o morro não, ele era calado. Ficava ali, como um mundo inteiro, plantado no chão, seguro, pronto para me segurar se eu cambaleasse. E esse silencio era mais como uma vibração pré-sonora do que como um vácuo. E o morro, mais como uma casa do que como uma pedra.

Ali, ele era o sitio que tanto gostava de ir nas férias, era também todos os enormes campos que os anões que existiam na idade media tinham que cruzar para encontrar um tesouro ou uma erva medicinal. Era o jardim secreto, para a menina que vinha órfã da índia, com canções de bolso que a serviam de consolo. Ele era a materialização de um dia chuvoso e tranquilo, quando eu podia deixar meu olhar se perder no entre das coisas, onde a chuva caia. Meu mais perfeito bem estar. Ninguém está lá. Ninguém nunca vai estar lá. Ninguém nunca esteve lá. O meu lugar inaugural no mundo. Minha poesia em formato de pedra.

Hoje, depois de muito tempo, eu olhei novamente na cara do morro. Ele me olhou de volta. Continuo não sabendo o que se passa em sua superfície. Continua a ser meu mistério pessoal. Lembrei do dia em que eu armei minha fuga para ele; quando eu coloquei uma banana, uma corda e uma muda de roupa na mochila, abri a porta de casa, determinada, e me seguraram pelo pescoço perguntando aonde eu ia. Obvio que não respondi, como eu ia responder: estou fugindo para o morro. Essa casa fala alto demais. Eu disse que estava indo brincar na praça, e voltei desconsolada pro meu quarto. E do quarto fiquei olhando o morro, da janela.

Hoje eu quis fugir outra vez. Quis colocar uma banana, uma corda e uma muda de roupas na mochila e seguir em frente até o topo, sentar, ficar em silencio. Deixar a chuva cair, lavar, e esquecer para sempre que existe mundo, que existe palavra, que existe perigo. Entre os prédios, agora ainda maiores, eu vejo seus recortes me emitindo sua tranquilidade. Meu campo verde da ideia média me manda um abraço entre os recortes de cimento. De dá um carinho silencioso entre toda essa zona que a gente faz.

Talvez essa noite eu fuja pra lá.

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