6 de junho de 2020

teatro de geladeira


ATÉ A GELADERIA
Muitas vezes, lendo ou ouvindo ideias interessantes, me acomete uma grande vontade de alinhavar pensamentos. A maioria dessas vezes eu simplesmente não tenho achado terreno para isso. Tenho bastante ansiedade ultimamente, que é basicamente como ter dor de cabeça ou gastrite ou ressaca, na minha geração. Todo mundo sofre de ansiedade como antigamente, na época dos meus avos, todos deveriam sofrer de dor de dentes.
A ansiedade é imediatamente transformada em imobilidade física cujo único membro do meu corpo que dela não participa é o dedo, que desliza o feed de todas as redes sociais na tela do meu smartphone. É obvio dizer que passo tempo demais olhando de tudo um pouco, tenho desejos e insights que me abandonam assim que eu passo à próxima imagem. É um constante abrir a geladeira sem saber o que está procurando. E sem fome.
Quando me dou conta estou na frente da geladeira, porta aberta, e tudo pra trás e pra frente é um filme desfocado. O que eu vim fazer aqui? O que eu procuro? Para onde vou? E todas as perguntas existenciais que couberem nesse tempo constrangedor que me percebo vazia na frente de uma geladeira cheia.
Para sentar agora e tentar alinhavar pensamentos eu tomei 5 gostas de Clonazepan. Faço isso recorrentemente, além do prozac cotidiano. Essas drogas de sedar estados extremos de desconforto são como um fast food da experiência espiritual do aqui-agora. É bem mais fácil com elas, um parque de diversões no corpo, mas eu sei que há funções do meu organismos que elas colocam pra dormir e que talvez só acordem daqui há alguns anos. Hibernações confortáveis.  Uma pergunta com um martelo: o que me sobra se eu não me entorpeço? O que eu faço com o desconforto? O que ele faz comigo? Pra onde vamos, eu e ele de mãos dadas, se eu desse a chance dele vir e ficar um pouco mais de tempo?
Não sei. A angustia me convida a me retirar de mim apontando a porta do aposento e, com toda a elegância, eu saio.
A questão é – estamos em casa, em isolamento social. Não trabalho, não recebo, não gasto tanto e o tenho comida. White people problems, obviamente. Enquanto isso no Salgueiro eu já perdi a conta dos tiros disparados só essa manhã.
Eu pensava que algo fosse acontecer, que fosse me acordar para novos mundos, me dar energia para construir outro platô possível pras sobrevivências que eu amo, como espécies animais habitantes de muitas dimensões. O teatro, esse cachorro simpático,  lugar cada vez mais raro de meu acesso e ainda assim tão vivo em mim, todos os dias. Todos os dias há alguém que sobre um palco (que é a vida presente), age.
Sei que hoje alguém acordou, cambaleou pela casa até a cozinha,  os pés ainda dormindo, estranhando a dureza do chão, unhas da maneira como a natureza as fez. Abriu a geladeira. E entrou em um teatro vazio. Sem roteiro. Estava ali para ensaiar algo. Corpo, espaço, respiração. Ela se apoia em seu corpo para estar ali fruindo da efervescência que é haver vida sobre um tablado.
 Dentro da geladeira um palco. No hiato entre os mundos, onde mora o teatro, também mora a geladeira. Abrindo a geladeira a gente encontra o vazio, o palco vazio. E a gente sente: agora é comigo, eu que escolho pra onde vou. A sede e a criação são farinha do mesmo saco.

DENTRO DA GELADEIRA
Agora estou aqui.
Começo pelas tensões. Não é simples sentir, aceitar as tensões. Teria de se mover com elas ali mesmo. Mas porque mover? Mover o que? Um movimento sem vocabulário. Seria apenas um corpo existindo e nisso não parece haver arte até porque ninguém vê. Que historia eu vou contar, dentro da geladeira, nesse palco vazio que é a geladeira aberta frente a minha mente em branco, com o mundo aí se virando e revirando la fora, aqui dentro, em todos os lugares?
E palavra? Qual seria a palavra.
Uma palavra para o agora, alguma capaz de captar o instante da egrégora, os anseios que não se sabem ainda palavras. Ou o movimento que não se sabe ainda movimento.
Tudo é corpo ainda.
Corpo é tudo em potência.
Beleza.
Beleza é agora a palavra que me cerca, por todos os lados. No momento que penso em dizer beleza talvez já não seja bonito, mas é disso que se trata uma construção cênica. A gente trabalha até ficar bonito. Então eu começaria assim: evocando a beleza. Tudo que é belo.

UMA TRANÇA ENTRE A GOTA, O TEMPO E O MAR
O trampolim estético me manda para o mundo da observação agradecida, que acho que muitos chamam de religião, e eu concordo. Se pudermos trabalhar nos despachos estéticos das fricções do sem sentido e do arrebatamento da consciência do finito, talvez possamos fazer uma trança entre a gota, o tempo e o mar. A gota e o mar, de Sidarta Galtama:
 “O que fazer para uma gora de agua não secar? “Joga-la de novo ao mar”.
Lançar a minha gota de agua que é a minha alma, ao mar, que é a experiência de vida – isso se dá através de uma ato de estética. Como um despache, um mantra, um silencio, um sacrifício, ou qualquer outra obra de arte.
O que a arte me ensina: qualquer ato estético é um despacho, uma mensagem em dimensão espiritual que passamos uns aos outros e às deuses. É a comunicação propriamente dita.
Pois não dá pra viver em estado de orgia da consciência. Meu corpo é uma máquina limitada. Mas mais limitada ainda a é ladainha de todos os dias me quer tomar a beleza que já é minha.  
Não quero que me tomem a beleza, então abro a geladeira. Todos fazem isso. É isso que fazemos quando abrimos a geladeira: achar a beleza. La onde há um palco vazio, tão vazio quanto um alfabeto de letras, números, formas,  movimentos, jogados uns sobre os outros sem harmonia. Sem dramaturgia.  Busco dar sentido ao corpo e ele me parece um fantoche quebrado de uma peça já encenada há muito tempo e que nem eu sabia o roteiro direito. Esse fantoche fica ali, esperando por um sopro de ar que o movimente. Eu levando os braços, mecho o quadril, ando de um lado ao outro. Alfabeto empilhado, e de repente meus pés que, apesar de serem só meus, ganham a sombra de todos os balés já dançados. Todas as obras estão pairando no ar e sussurram contando piadas sobre o próximo ato. Eu não entendo, pois não o vi. Os fantasmas da arte contam piadas internas mas que quero fazer parte do grupo.
O próximo ato. Qual é o próximo ato? Quem sou eu no próximo ato? Quero voltar a ter meus pés, quero alinhavar palavras para que minha alma volte ao mar. Estou dentro da geladeira, nessa potente fenda do espaço-tempo. Espero que mais alguém abra essa porta:  eu vou agarrá-lo pela roupa e faze-lo entrar. Sentar-se na plateia que é aquele lugarzinho na porta onde geralmente colocamos os ovos. Hoje colocarei ali bundas. Todas que abrirem essa porta.  Eu vou perguntar “isso te faz sentido?” Se eu levantar assim o braço, e depois pular e virar de costas: faz sentido?  E se eu começar com “há algo de podre no reino da Dinamarca?” Você vai querer ouvir essa história?

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