13 de junho de 2008

Foi


Eu estava no meu quarto, ouvindo musica e olhando pro teto. Eu estava triste, triste por uma porção de coisas. As vezes eu me encontro no meio do nada, sem nada a dizer e com mais de um maço de cigarro obstruindo os meus pulmões. Em completo desalento, constatando que eu não tenho casa, que eu não tenho nada, como sempre. Detestando minha falta de criatividade para inventar meus estados de humor.

Então eu estava no meu quarto, ouvindo Nirvana e Smashing Pumpkins e essas coisas que levam a lembrar de outros tempos quando eu ainda tinha esperança da vida ser algo além do que o agora e aqui, essa coisa sem glamour e depressiva que eu bem conheço. Essa coisa sem aconchego. Essa... essa concha na qual eu me meti à tanto tempo.

Eu estava olhando os pequenos relevos do teto, e pensando eu mim a olhar os pequenos relevos do teto, pensando como eles não foram planejados, pensando como eu não havia planejado para aquele momento. Pensando que aquele momento era mais um aborto de momento do que um momento em si, tendo raiva daquele momento, ficando triste e pensando em como as pessoas sabem viver e eu não sei e fica ali olhando os relevos do teto – pensando como aqueles relevos são na verdade mais um aborto de um teto sem relevos do que relevos em si.

E então entrou Ana no quarto, ela abriu a porta e entrou sem bater, e ela entrou rápido, como alguém que está procurando alguma coisa com pressa, e ela olhou para mim e em mim fixou seu olhar. Em mim ela fixou seu olhar, e pôs seu corpo numa base firme, com centro bem entre sua vagina misteriosa e seu ânus contraído, uma linha a puxava dali para o chão e ela olhava pra mim, nos olhos, na boca, nos olhos, nos olhos.

Então ela virou também o corpo pra mim e ela cruzou os braços e empurrou a sua bacia pra frente, como se esperasse alguma coisa de mim. Ela continuou me olhando, ela queria que eu dissesse ou fizesse alguma coisa, mas eu não sabia o que fazer então eu fiquei só olhando para aquele rosto branco e cansado e percebi que Ana parecia o fantasma do passado ou do futuro ou alguma divindade que conhecia a minha vida como eu conheço um filme que eu já vi milhões de vezes.

Fiquei incomodada com o olhar de Ana, ali, parada, com seus braços cruzados, mas principalmente com a impressão de que ela sabia o que eu deveria fazer naquele momento, enquanto eu... eu não sabia de nada e por isso estava a olhar os relevos do teto e a pensar depressivamente sobre qualquer coisa que pudesse existir e que existia no mundo inteiro.

Eu me sentei, com pesar, como se fosse ouvir um tremendo esporro daquela mãe branca e temendo a possibilidade de levar um tapa da mão fina e clara de Ana. Eu não agüentava olhar firme para seus olhos e por isso eu abaixava a vista e ficava acariciando meu tapete peludo com os dedos dos meus pés ainda sujos do dia que havia acabado de se findar. E eu ficava cada vez mais nervosa. Para meus constantes desapontamentos, Ana não dizia nenhuma palavra e sequer movia-se. Para meu desapontamento, eu não tive uma idéia brilhante para dizer a ela, e nem uma revelação espiritual, e tampouco me veio a cabeça uma historia legal para distraí-la. Eu ficava ridiculamente a baixar o olhar e voltar novamente a olhá-la.

Ana se sentou na poltrona do quarto, em frente a minha cama, e já não olhava mais pra mim. ficou lá, como que desapontada comigo. Olhava de repente, como se tivesse ouvido minha respiração se alterar e achando que eu fosse começar uma fala ou um movimento, mas eu não ia, eu continuava imóvel, e ela deixava sua cabeça retornar ao seu lugar vagarosamente, como se tivesse acabado de ver uma esperança passar voando e fugir pela janela até desaparecer.

Aquilo me cortava o coração, mais por mim do que por ela, admito. Eu, que nada sabia e nada fazia, era um pedaço de carne apodrecendo sem nem me dar conta de que vivia. Eu, que nada era, que nunca fui nada e provavelmente nunca serei nada. Eu, que não me cansava de me afogar cotidianamente no caos do mundo, no caos das possibilidades que leva a mais plena impossibilidade. Eu, que desapontava Ana há tato tempo. Eu... sinceramente, eu não sabia o que fazer com esse tempo todo que me restava.

Meu olhos se encheram de lagrimas, eu amassei muito forte meu travesseiro para não chorar. Ana se levantou. Eu a fitei, eu sempre a fito, como uma fada que se move da forma mais linda que um corpo poderia se movimentar. Ana desabotoou todos o vestido; ela estava enraivecida, dava pra ver no jeito com que seus dedos pegavam firma cada parte de tudo o que tocava, como se espremesse piolhos, carrapatos, aranhas, besouros, todos esses bichos que eu acho que Ana espremeria com raiva. Ela ficou nua, com o vestido jogado à seus pés, a pele branca arrepiada, os cabelos soltos escorrendo pelo pescoço e seios rígidos. Parece que todo o corpo de Ana tem toda a consciência do que é ser e estar ali. Era tudo o que eu queria. Então ela ficou nua e quando acabou de se perceber nua, voltou a me olhar. Agora seus olhos estavam mais escuros que nunca, mais profundos que nunca, como um mar em tempestade, Ana me olhava na alma, Ana me invadia e Ana era toda olhos e incitação. Ela queria algo de mim, ela postergava seu desapontamento final.

Mas o tempo chegou e ela deixou de olhar em mim e olhou o chão, o tapete manchado de café e com cinzas de cigarro. Ela fungou baixinho. Passou a mão despretensiosamente pelo cabelo. Então ela se retirou do vestido caído ao chão. Caminhou até a porta, passo a passo, pés presentes.

Ana caminhou até a porta, pegou a maçaneta, olhou pra mim mais uma vez. Suas lagrimas escorriam como uma cachoeira abundante, incessante, cristalina, águas brotando límpidas da fonte oculta entre as plantas.

Ela abriu a porta e se atirou para fora, em um susto, ela correu pro longe. Desapareceu.

Eu levantei, procurei por toda a casa. Ana havia partido, como sempre.

Eu voltei ao quarto. Abri a janela para que o vento me viesse acalmar. De pé, eu me despi de minhas roupas e tomei o vestido de Ana nos braços. e eu chorei. Chorei por ter feito com que Ana, tão bonita, chorasse. Eu chorei mais, porém, por não saber ao que me devo neste mundo, por não saber de mim, por não saber.

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