2 de janeiro de 2007

O Remetente Desconhecido

Ele preferiu não assinar. A carta em si já era uma assinatura de muitos nomes. Apenas ele mesmo escreveria à Ana daquela forma, ele sabia disso.

Colocou o ultimo ponto. Papel de pontas amassadas, letras confusas, frases sem ponto, falta de data. Uma carta escrita para Ana! E tão diferente desses telegramas importantes, mas ainda assim uma carta para Ana! Que ótimo!

O garoto levantou da pequena cadeira de madeira que o colocava confortavelmente sentado junto à mesa. Suas longas pernas haviam ficado esmagadas debaixo da mesa durante todo o seu longo tempo de escrita, e agora os joelhos estalariam em agradecimento pela nova posição em que foram colocados. A mesa ocupava metade do espaço disponível no cômodo da casa que o sujeito que a vendera intitulara “sala de jantar-cozinha”. O teto era baixo, o que parecia manter o ar do lugar sempre quente, como em um ninho. Apesar disso, definitivamente, aquilo não era um ninho. Pelo menos para ele, aquilo não era um ninho.

Estalando as costas e os dedos o garoto alongou o olhar para a garrafa de vinho sobre a pia que abençoava a parede do outro extremo do cômodo com um incrível ar envelhecido. Sobre a pia, estendia-se uma janela de madeira pouco talhada e torta. Do lado de fora estava todo o resto do mundo, emoldurado pelas irregularidades da janela da casa velha.

- é isso.- pensou- a carta está pronta.

Anoitecia lá fora e o vento que limpa o deserto dele mesmo já trabalhava.

- isso tudo é muito lindo, não é mesmo?!- falou para as paredes, entre dentes, em um sorriso cerrado. Aquele era um de seus momentos, talvez o mais lindo de toda a sua vida. Naquele coração jovem e pesado, como em todos os outros, o mundo explodia. E então era fácil sorrir.tao facil sorrir naquele momento. Mas, Ana... Ora... Ana não sorria mais! O que faltava a Ana para sorrir? Ele queria tanto que Ana sorrisse. Ele queria tanto abraçar Ana. Mas Ana não estava lá. E não adiantava o que fizesse, Ana não estaria lá. Talvez Ana nunca fosse estar.

Arrancou a rolha com os dentes. Cuspiu na pia e limpou os lábios com a manga da camisa. O primeiro gole foi seco e amargo, como sempre. O primeiro gole de qualquer coisa sempre se mostra seco e amargo, como o primeiro suspiro no mundo, quando seus pulmoes se desgrudam e você berra com sua boca sem dentes e aperta ainda mais seus olhos de recem-nascido .
Logo o vinho escorria pela garganta arranhada de cigarro e de gritos da noite passada.

Pegou novamente a carta nas mãos. Olhava com tanta atenção para aquelas palavras que parecia querer criar algum tipo de telepatia. – Nossa.- pensou- O que faço eu por Ana!

Ele havia passado a noite procurando por Ana. Suas gargalhadas doces o mostraram o caminho, longo e tortuoso, sem fim. Os galhos cortaram seu rosto e seu peito, desenhando a pele com filetes de sangue seco, o que criou um certo alarde na cidade durante o caminho de volta pra casa. Mas apesar da dor fina ele não desistiu. Correu como não corria há anos, fechou os olhos e se foi entre os galho secos e as folhas mortas aos montes sob os pés descalços. Deixou sua alma correr para Ana, e sorriu tão largamente que parecia traduzir a gratidão do mundo por si mesmo apenas no espaço que ocupava a sua boca. Gritou por Ana tanto, sorriu por Ana tanto e descreveu atenciosamente como o céu estava naquela noite. E debaixo da lua enorme, ele adormeceu. Dormiu enquanto falava com Ana, e respirava o ar gelado e úmido. O fato de Ana não ter aparecido durante toda noite, e não o ter abraçado, e não o ter tocado, não o incomodou.

Acordou como sol que brilhava timidamente encoberto pelas nuvens do outono bem em cima da sua cabeça. Lavou os pés no rio que corria alí, perto da ruina de seus sonhos. Quando amanhecia Ana parava de gargalhar e desaparecia na chamada "memoria falha da noite passada". Mesmo assim, ele queria Ana, de todas as formas, mesmo não existindo.

Mas agora, agora, Ana não estava lá, e depois que a noite se deitou completamente sobre a cidade isso começou a pesar.

27 de dezembro de 2006

Time to wake up.

"Ana, Ana! Acorde, minha pequena. Olhe o mar. O vento sopra tão, tão longe, tente entendê-lo. A água pode passar pelas suas pernas e não fazer nenhum mal, tente entendê-la! Olha para as nuvens, pra cima, vai ajudar no seu engasgo. Oh, pobre Ana, engasgou com o mundo! Olha pra cima Aninha, vá, não se concentre tanto assim no próprio estomago.

Abra os olhos minha pequena, meu anjo, abra os olhos, e pare de chorar, tudo não passou de um sonho, que coisa boba!

Gaivotas, canto das baleias, dor de frio nos pés (mas não se desespere, temos fogo) essas nuvens, ah Ana, olhe essas nuvens como são lindas, como elas pairam sobre a sua cabeça e te dizem com um sussurro que é tudo um banho de flores. Elas são dragões gigantes prontas para abraçar e beijar todos as crianças perdidas, como você.

Vamos! Seu corpo acaba bem na sua pele, não tente dilacerar-se para se unir ao mundo! Caber dentro do seu corpo não pode ser tão difícil...

Talvez você sinta falta das musicas do velho oeste, que você nunca escutou realmente mas que estão gravadas em um corte no seu braço esquerdo. Talvez você sinta falta das alturas, do gosto de terra ou de olhar bem fundo no buraco infinito que as pessoas trazem no peito. Talvez você sinta falta... mas vá lá Ana, que tudo isso você encontra depois da morte. Não anseie de tal forma, não tente agarrar o vento, não tente aprisionar as almas para vê-las presas dentro do seu vidrinho de guardar borboletas. Seu lugar é aqui, não em todos os lugares. Amarre-se nos próprios pés, e segure bem seu coração onde ele deve estar: dentro de você. Não vá perdê-lo em qualquer rua, por mais amor que você tenha a ela. Não vá deixá-lo com qualquer um, por mais que você queira. Não vá esquecê-lo nas lembranças. Na vá Ana, não vá, enterrá-lo perto do rio só porque as suas elucubrações malucas te dizem que você precisa se doar ao mundo.

Escute, minha pequena, o sangue é seu, os olhos são seus, a vida que é tua só corre nas tuas próprias veias! Caiba em si! Pare com isso de se reconhecer nos olhos de todos que passam na cidade, pare de brilhar nas luzes dos aviões lá no alto, pare de se diluir no mundo.

Vamos Ana, acorde. Acorde Ana, acorde. Tudo isso não passa de um sonho."

15 de dezembro de 2006

Hey You

Sabe você, às vezes a gente não tem muito o que dizer. Eu chamo isso de pensamento rápido: as idéias são tão ligeiras que passar pela cabeça e não deixam nenhuma palavra que possa ser usada na descrição delas. Mas não acredite nisso. Foi só uma desculpa que eu inventei para mim mesmo para não me sentir mal sobre a minha mente lerda e queimada pelos muitos tragos de cigarro e bebidas fortes que se assemelham àquela água que sai dos sacos de lixo preto das encostas das ruas dos grandes centros.

Então, sem as palavras, ficam só os tropeços de uma vida falha. E o sangue derramado no asfalto, e moscas presas na garganta, e uma dor... uma dor muito grande no peito. Enfisemas. Enfisemas doloridos, causados por mais nada além dos tropeços anteriores. Chato pensar que não dá pra ser diferente. Que atrás desse grande muro de concreto, que todos da minha juventude tentam escalar ou explodir, não há nada além de uma continuação espelhada de tudo que já existe aqui, e as pessoas que lá andam são nós mesmos poucos anos mais velhos.

Perdemos a inocência quando olhamos o horizonte e vemos não mais a Deus, mas um mar de óleo borbulhante. Perdemos a razão quando podemos sentir esse óleo queimando nossos pés e nossas peles sendo desfeitas. Perdemos o coração quando não mais sofremos por isso. Mas perdemos a nós mesmos quando sofremos, sentimos e vemos isso tudo. Fazer o que? A loucura paira aqui, não a ignorarei. É um preço que se tem a pagar pela verdade: nossos próprios corpos.

Iluminados são aqueles que conseguem, mesmo engolindo toda a podridão que essa loucura evidencia, apenas ser. Eu não consigo. Então eu fico mudo.

1 de dezembro de 2006

...

Em relação a competência V – recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando as diversidades socioculturais- sua nota foi 62,22, o que te situa no grupo de desempenho considerado entre regular e bom, sendo a media nacional de 37,67.

19 de novembro de 2006

A bíblia e o álcool

Só um pouco anestesiante e amortecedor

Sem equilíbrio ou com uma esperança doentia as coisas não parecem mortais.

Então encha a cara, ou leia a bíblia.

Ás maiores dores do mundo, ás desgraças inoportunas e sem direção de arte, á todas as crianças e homens abandonados.

E assim se segue. qualquer verdade que te conforte vira uma religião.

A ciência. A arte. O amor. Escolha uma.

É acreditar cegamente e seguir em frente. Vamos lá. Temos hora para o jantar.

Ou não...

Aí você vira o que?

Sei lá...

Quando não se acredita em nada, o que somos?

Eu não acredito em você. E agora?

Auto piedoso é aquele que se concede uma crença vital. Arranja-se um espaço de existência possível, uma razão e um caminho, uma vida ou fim justo dela. A verdade se faz abrigo, comida e nome: um útero. Quando você deve pagar por ela? Um sorriso basta? Um esquecimento?

É mais conveniente vender a alma ao diabo...

Será que ainda não nascemos? Que somos fetos alimentados por nós mesmos? Alimentados pelo tal “otimismo que se bebe”? e não se acreditarmos nela? Existe algo depois desse mar de petróleo borbulhante?

Quando não se tem uma verdade.... o que se é? Onde se está? O que se come?

Olha... eu não tenho um rosto! Olha!

Você consegue enxergar por trás dos óculos das pessoas? E por trás dos sorrisos? Aquele no espelho... ele te vê? Aposto que ele responde silenciosamente ás suas perguntas despropositadas de sua alma jovem e poderosa. De carne fresca e esperançosa. Aquele no espelho... ele te vê? Ele o ajudaria a carregar o seu fardo? Você se conforta naquele olhar? E quando você está sentado na rua, e chove, quando tudo acabou de desabar e você parece ser o único ser a ter as narinas sensíveis ao cheiro da fuligem e do enxofre que sobe das bases sólidas recém quebradas dessa grande cidade luminosa... ele te olha?

Esses pulsos cerrados quebram o que? Á quem ofendem? E se ofendem, qual o seu potencial de pedir perdão pelos destroços? Você cuspiu a sua piedade no ultimo bueiro, logo depois de ter sofrido uma desilusão. E agora?

E agora que não tem ao menos como voltar para sua vida pacata e livre dos perigos do pensamento? E agora que não se aquieta nem sedado? E agora que não tem mais nada?

15 de novembro de 2006

The Killing Moon

Under blue moon I saw you
So soon you'll take me
Up in your arms
Too late to beg you or cancel it
Though I know it must be the killing time
Unwillingly mine


Fate
Up against your will
Through the thick and thin
He will wait until
You give yourself to him

In starlit nights I saw you
So cruelly you kissed me
Your lips a magic world
Your sky all hung with jewels
The killing moon
Will come too soon


Under blue moon I saw you
So soon you'll take me
Up in your arms
Too late to beg you or cancel it
Though I know it must be the killing time
Unwillingly mine

11 de novembro de 2006

“Você... quer ouvir a descrição da morte? A evacuação da alma.... será como uma tosse?”

Meus nervos nunca estiveram tão inchados e meu corpo nunca esteve tão imóvel. Uma bomba irá explodir na boca do meu estomago a qualquer minuto: é melhor travar os lábios para não cuspir fogo. Consigo sentir o calor, fruto do trabalho das minhas infinitas células para me manter vivo apenas para amar aquela criatura por todos esses longos anos, escapando por todos os meus poros de uma só vez.

Eu olho bem no fundo desses olhos incertos de si mesmos. Eu olho o corpo indócil que por muitas vezes me fez suspirar profundamente quando em sua presença e rastejar de agonia no caso raro de sua ausência, que viciou minhas mãos e hábitos e pensamento, que me escravizou.

Eu olho os seios ofegantes do cansaço e da euforia daquelas ultimas horas de ruína, como se nunca os tivesse visto, como se já não me fossem íntimos, como uma aparição divina.

Era o ultimo suspiro ante a morte pontual e irremediável, o ultimo segundo, o susto, um bocado de ar preso no pulmão imóvel depois da inalação repentina da verdade. Era o espanto dividindo as bocas nunca dantes desunidas, mas eu ainda assim consigo sentir o cheiro de seu hálito: docemente irresistível, estranhamente familiar, como a sombra da sua vida abandonada com profundo desapego na ultima esquina depois da descoberta da própria mediocridade e infinita beleza estética.

Eu me viro e caminho até a porta. Eu não olho pra trás.

Eu teria dito algo ofensivo, ou feito qualquer coisa que a marcaria a memória e a faria chorar de arrependimento no dia de sua morte, que não contaria a ninguém por pura vergonha de ter um dia visto tal atrocidade e, por isso, não ser mais um ser limpo, como gostava de se vender. Eu teria cortado sua garganta e arrancado suas unhas uma a uma. Eu teria dito: eu nunca gostei do seu cheiro... Mas na frente de tudo isso pairava uma certeza de que nada precisa ser dito, de que isso, por si só, já é o ponto final que reúne nele a essência de toda a longa frase dispensável que o precede, ou seja, a vida.

Eu deixo a chave do lado de dentro. Eu saio. Eu deixo a porta aberta, talvez na esperança de qualquer desses psicopatas criados pelo mundo moderno encontrar naquele quarto e a naquele corpo a possibilidade de liberar todas as suas angustias doentias e sufocadas pela televisão e promover orgias de sangue e dor, fazendo tudo parecer justo.

Mas o espelho não foi quebrado. E meu peito ainda arde em fogo.

Até que eu tire essa vida fácil das minhas veias.

Quando eu chegar a 10, feche os olhos.