18 de dezembro de 2007

Violão partido ao meio

Entre o vermelho e o amarelo daquelas linhas, havia um sorriso tímido escrito. Ana nunca havia o percebido ali, assim, sem querer se pronunciar. Mas dessa vez lá estava ele. Rico e rindo bem alto. “ e se eu o pudesse tocar?” ela pensou calada.

Ana não sabia de muita coisa naquela noite. Era como se uma grande borracha azul tivesse passado asperamente entre seus olhos e tudo, definitivamente tudo, tivesse sumido. Ela não queria, nunca mais, voltar a lembrar de nada.

Lá fora a noite rugia como um leão faminto. As luzes todas se agitavam sozinhas. Balançavam.E a cerveja quente do chão parecia evaporar sob o calor do vento a raspar nas poças de sujeira e fome e desilusão que enlamaçavam a cidade inteira. Era tudo muito detestável. Mas não importava mais. Até o enjôo havia sumido. E tinha aquele sorriso, ali bem na frente de nada, a sorrir para o nada, com sua benevolência inacreditável que só os anjos possuem. Ela teria dito “olá”, se seus pensamentos não vagueassem tanto pelo nada pacifico. O oceano a chamava amanteigadamente, aquelas águas eram calmas e mornas, ela sabia. E o cheiro da maresia abençoada pelas estrelas. Ana sonhava com as estrelas. Enfim, Ana sonhava com as estrelas e com o mar e com toda aquela imensidão debaixo dela e do seu corpo calmo adormecido sobre a palma da mão do universo. Era só o que existia. Porque seu corpo tão facilmente se cansava de andar vestido, e ter de defecar em uma louça branca e falsamente esterilizada, e ter, enfim, ter de estar aqui, assim, e gesticular e se comunicar o tempo todo de uma forma que só a fazia se sentir incompreendida e infeliz. Tinha alguma coisa muito importante por trás do que todos chamavam de vida, algo importante como aquele sorriso que lhe sorria agora. Era inevitável prosseguir até achar o extrato do que é, a única coisa que pode ser e que sempre foi. Era inevitável abandonar aquelas horas, aquelas antigas e perpetuas horas. Ana estava indo embora. Finalmente, Ana estava indo embora dali.

Deitada no sofá -eu sei disso, que Ana estava deitada no sofá do lugarzinho amontoado de pedaços de pessoas, envolta no bafo que saia daquelas paredes- ela fechou os olhos e se deixou cair em um profundo delírio de imagens e sons. Ela pensou que assim seria, que seria assim que a verdade se mostraria um minuto antes de sua morte. Um sorriso -aquele sorriso do quadro da baleia e das arvores, o tal sorriso que havia sorrido à Ana minutos antes de seus olhos se fecharem- veio se abrir entre os lábios doces da menina. Seus olhos delicadamente adormecidos se franziram repentinamente numa contorção gentil, e Ana riu. Gargalhou. Ate perder o ar.

Do outro lado da sala, de pernas cruzadas sobre o tapete florido, ele a observava. Ele tentava sugar o hálito de Ana para recolher um pouco da alma da menina dentro de sua alma. Era a paz. Ana era a sua paz. Ana era o que lhe restava de verdade dentro de seu peito. E agora ela estava sorrindo, gargalhando, expulsando com explosões de alegria pura o ar quente de seus pulmões e isso o fazia também sorrir. Sem gargalhar, mas ainda assim sorrir. Ele fechou também os olhos. Seus dedos, entre as cordas firmes de um violão partido ao meio, dançaram um baile suave, como seus antepassados, no dia do divorcio do céu e da terra. A melodia invadiu o lugar. E ele chorou como uma criança que acaba de perceber que está perdida em um bosque seco, longe de casa.

27 de novembro de 2007

Aos nossos pecados

Uma estrada longa. E os pés descalços rasgados nas solas. E os tornozelos ocos, doídos. Uma doce lua brilhando no céu da noite... uma mulher chamada Iolanda vinha.

A estrada brilhava azul prateado sob seus pés. Dos lados um breu fecundo. A mata engolia seus gemidos noturnos. O próprio rio calou seus lamentos. Iolanda passava.

Narinas abertas e o suor escorrendo pela testa e entre os seios. A noite era fria, mas não para ela. Entre os finos e delicados dedos, entre os cabelos negros e sujos, entre os dentes de marfim gasto, o vento dançava em suaves rodopios.

Em sua boca entreaberta um arzinho cítrico se deitava. No puro contorno dos lábios mais de mil inscrições sagradas.

Iolanda carregava o mundo no ventre e suas pernas tinham a força dos deuses para não dobrarem-se sob tal peso.

Iolanda tinha os corações de todos os homens do mundo a pulsarem dentro de seu estomago.

Iolanda tinha o destino nos olhos.

Dentro de um lenço amarrado carregava a cabeça de três recém nascidos. O sangue ralo fugia entre as tramas do fino tecido, gotejando no chão barrento como água benta sobre a testa dos pecadores. Ela trazia a cura. A cura para o que nem o fogo, nem a água poderiam limpar: nós.

22 de novembro de 2007

De noite eu visito o inferno

Choveu tanto, tanto, que todo o lugar começou a encher e transbordar. As pessoas todas entraram dentro da casa, subiram as escadas. Ficaram lá em cima, olhando a chuva dominar tudo, aquele furacão imenso que destruía tudo. Os gambás, com medo, subiam nas arvores tremulas e fracas. Eles eram todos pretos, com aqueles olhos saltados, como homens drogados. Estavam todos loucos. Aquelas caras de emburrados, que iriam matar pessoas e comer urtigas. E os cavalos passavam assim, também como furacões, fazendo a água barrenta sob seus cascos se espalharem como espirros de espíritos furiosos. E o horizonte negro parecia dizer: esse é o ultimo dia. Esse é o ultimo dia. Ultimo dia.

Era então o ultimo dia, e todos bebiam cervejas longas e quentes envolta de mim e tinham os olhares perdidos, zumbidos na cabeça, e mil planos para um amanha sombrio, que poucos sabiam que não existiria. Eu estava irremediavelmente sozinha. Estavam todos loucos, hostis, querendo matar os cavalos.

E os meus pés molhados, eles doíam muito mesmo. Era como se a água tivesse chegado nos meus ossos, e eles houvessem ficado frios e enferrujados. Eu só queria ir pra casa.

E então quando eu cheguei em casa só tinham espíritos. Meus pais, na mesa da cozinha há tantos anos... as mesmas gargalhadas nervosas, tosses descontroladas, pão com manteiga e cheiro de café velho. E aquela gosma de noite confusa na boca, de leite azedo, um cheiro de manha tediosa, com uma panela de pressão fazendo barulho no fogão.

Eu fui procurar meu irmão mas ele estava de saída pra correr de carro pela lama que a chuva tinha deixado. Ele desceu as escadas e não olhou pra mim;foi embora pra voltar em tempo indeterminado.

E eu vagueei pela casa. Pés úmidos e escorregadios. Um passarinho chato gritava lá fora, passarinho que grita pra dizer que a chuva terminou. Mas não importava. O sol veio amarelo fazendo a água que ainda pingava de tudo brilhar feito diamante. Mas não importava. O sol me fez lembrar uma infância chata, quando eu fingia que ia caçar jacarés e lagartos e levava um cantil verde-mato. E voltava pra casa sabendo que não tinha nem visto jacaré nenhum.

Aquele era o meu ultimo dia e eu estava triste porque eu sabia que ele ainda ia demorar pra acabar.

18 de outubro de 2007

Casa de carrinho ou o quê?

Quando Ana era pequena, ela passava assim pela rua e via aquelas pessoas encostadas nas paredes dos prédios, debaixo de marquises ou arvorezinhas, por aí. Ela nunca pensava nada. Ela nem olhava pra essas pessoas com o cobertor cinza e com cara de espera desarmada. Mas um dia choveu. Choveu enquanto Ana andava pra casa, de mãos dadas com a avó, de volta do supermercado, bem no finalzinho da tarde quanto o céu está azul morrendo mas a rua e os cantos da rua já estão escuros e as luzes amarelas iluminam estranhamente as passagens e as pessoas engorduradas que voltam pra casa também, que nem Ana ou um pouco mais cansadas que ela. Mas então chovia e Ana passava pelas mesmas ruas de sempre e viu umas pessoas cinzas dessas sentadas na calçada, cobertas por um cobertor velho e também cinza, com os pés molhados e um grande carão de frio e solidão. Do lado de uma arvores, no canteiro semi-destruído cinza de cimento, tinha um carrinho de supermercado todo enferrujado, largado lá pra não fazer nada. Foi aí que Ana teve uma idéia, que veio a ecoar, no futuro próximo (já em seu quarto tedioso) como uma opinião sobre aquelas pessoas nas quais ela nunca havia pensado. Foi assim: ela pensou: tinha o carrinho. E tinha a coberta. E tem essas caixas de papelão que ninguém usa mais depois que o que tinha dentro delas acabou. E tem um montão de plástico voando por aí na rua que eu bem vejo. Tem as pessoas, com a coberta, e elas tão com frio e não tem pra onde ir e nem o que fazer. Elas deveriam então pegar o carrinho, virar ele de cabeça pra baixo, cobrir com papelão e depois com plástico. Aí não entraria chuva dentro do carrinho, que a essa altura já seria quase uma casinha. Aí eles entravam dentro do carrinho e se cobriam com a coberta, que por sorte ainda estaria seca, e pronto. Eles passariam a noite quentinhos no canteiro. Era uma solução tão obvia que até Ana poderia executá-la.

Essas pessoas não tem criatividade - foi o que ela pensou, enquanto não fazia nada naquele inicio de noite chuvoso dentro do quarto tedioso e solitário.

Hoje Ana se olhou no espelho. Ela tinha essa cara de espera desarmada e tédio e frio e solidão. Bem igualzinha a cara daquelas pessoas cinzas da rua que não faziam casinha de carrinho de supermercado porque eram sem criatividade e burras ( apesar de Ana nunca querer admitir que existia burrice no mundo pois, existindo burrice, poderia ser ela mesma uma burra sem saber. Não existindo burrice, no Maximo ela seria uma pessoinha cinza sem criatividade.) então ela tinha essa cara. E ela se lembrou diretamente daquele fim de tarde, do carrinho, do cobertor cinza e toda aquela historia. Ela pensou – nossa, como estou parecida com aquelas pessoas! – e se arrependeu de, naquele dia do passado, não ter parado pra perguntar porque é que as pessoas não faziam a casinha de carrinho. Porque só assim – pensou – só assim ela saberia porque diabos não fazia nada quanto ao seu estado atual.

Ana teve medo que ao cruzar com uma criança na rua deixasse a mesma impressão que aquelas pessoas do passado haviam deixado nela. Porque parecia tão obvio, tão obvio que Ana não sabia pra onde ir, e não tinha o que fazer, e tinha frio e esperava por uma coisa que nunca viria, que qualquer criança poderia saber dessa sua condição medíocre. Talvez alguma criança tivesse uma idéia fantástica para arranjá-la um abrigo. Mas as crianças não param na rua pra contar idéias sobre os estranhos para os próprios estranhos, então... então Ana ficaria assim mesmo: sem saber de nada. Que nem as pessoas cinzas que, provavelmente, passaram aquela noite todinha no mesmo lugar molhado que estavam.

2 de outubro de 2007

Diálogoemcimadaponte

Ele disse que não poderia ficar ali ele disse não mas sabia que não era verdade apesar de dizer ao contrario ela sabia que também não poderia ficar ali mas ficou até mais do que o normal porque ele disse que ia embora naquele segundo mas sabia que ela não havia acreditado e por isso e também por sua própria vontade ele não foi. Ela falou que a questão já havia sido resolvida que ele amava ela e ponto final e ele disse essa não é a questão pare de se enganar e ela disse você é quem se engana em pensar que essa não é a questão pois mil e uma pessoas vivem pensando que essa não é a questão e todas morrem sem terem vivido o que tinham que viver que era o Maximo que elas todas poderiam fazer e eu não quero fazer isso com a minha vida e por isso eu preciso de você. ele disse você é louca me deixa em paz eu tenho outra pessoa e eu já decidi o que eu quero. Aí ela chorou. Aí ela disse ta bom mas você vai se arrepender disso porque em um ano ou menos vai reparar que só viveu mentiras e perdeu seu tempo inventando que não me queria quando na verdade nunca pode viver sem mim. ela disse mas tudo bem eu vou embora e você nunca mais vai me ver e eu também encontrei outra pessoa e estou muito feliz e não preciso mais de você mesmo porque você só conta mentiras e eu não quero mais mentiras no mundo porque ninguém precisa delas e a vida é muito mais bonita quando vista de perto. Ela quis se jogar da ponte e ele disse não faça isso porque eu te amo. E ela pensou do isso me adianta se você não está comigo e nunca vai estar mesmo e eu não quero viver sem você eu preciso tomar um café. Ele fumou um cigarro. Ele jogou o cigarro fora pela metade e disse que não queria mais fumar aí acendeu um outro cigarro de filtro vermelho e disse que amava ela. Ela disse foda-se você não faz nada quanto a isso não sei porque então vai ficar com a sua namoradinha gente fina que eu vou pintar um quadro de vocês e expor na minha vernissage com vinhos e depois vou fazer uma orgia com todas as meninas mais bonitas do mundo que nunca vão entender metade do meu olhar e sempre vão ser felizes porque são as mais bonitas do mundo e sabem que são felizes e querem salvar o mundo do câncer e eu sei que você não gosta metade delas do que você gosta do seu gato. Aí os dois ficaram calados e ela virou as costas pra ele e foi andando embora. Aí ele disse o que é isso o que você está fazendo porque você me trata com tanta hostilidade quando eu só te dou amor e amizade? Ela se virou e pegou ele pelo braço e falou escuta aqui você é muito burro.

Aí todas as estrelas riram muito.

1 de outubro de 2007

O Jamais

A tarde pesou como um rinoceronte cansado. Como dizer, ainda, como dizer que Ana faltava? E porque faltava? Por onde andava? Faltava um pedaço de céu. Faltava uma parte da paz. Faltava um suspiro no vento, um sorriso no espelho. Faltava, só. E era Ana. Existia um hiato que gritava, uma ventania não o deixara o dormir durante toda a noite e esse sono... esse sono o doía. O doía pois sabia que jamais o deixaria de sentir. Ele se sentia o maior dos hereges, o maior dos amaldiçoados e o maior dos sábios. Pois só ele sabia de Ana e sabia o quanto Ana faltava. Mas só ele era o incomodo de Ana, o louco solitário a viver em uma falta tremenda, em um buraco tão fundo, que por mais que tentasse não podia ignorar.

“Eu sou o que não existe. Eu sou aquele que acredita em uma historia de fadas. Eu sou o que não pode ser.” - Ele pensava.

Ele vivia como se nunca houvesse conhecido Ana, era um mentiroso. Um mentiroso capturado por sua própria mentira, como qualquer um dos outros. Capturado e enganado. Ele não sabia o que doía mais, ou o que fazia mais sentido. Viver em mentira ou em busca daquele corcel invisível que agitava os ventos quando galopava lindamente durante as tardes mais lindas do mundo.

Deitado no chão do quarto, olhando as folhas verdes a tremerem com o vento frio que soprava lá fora, ele ouvia um grito estridente e rouco e cansado de tanto se repetir, que vinha direto de seu peito. O grito chamava por Ana. Ele o conhecia muito bem. e ele planejava como poderia apunhalá-lo durante a noite, emudecê-lo.

Quando veio o verão, e o vento frio parou de soprar e as folhar pararam de tremer, ele ainda estava deitado no chão do quarto. O grito ainda ecoava por toda a casa.

O mundo não permitira, simplesmente não permitira, que o grito morresse.

E agora? – pensava ele - E agora, Ana?

20 de setembro de 2007

Lanternas e sinos

Tac tarac tarac tac tarac tarac tac tarac tarac tac Tac tarac tarac tac tarac tarac tac Tac tarac tarac tac tarac tarac tac tarac tarac tac

Quando os tambores soam como o coração de deus. Quando sua própria respiração se integra suavemente e ininterruptamente à rotação do universo. Quando o homem pensa em virar padre. Quando a santa sabe que santa é. Quando a baleia canta lá no fundo e fez uma criança nascer aqui em cima. Quando Alice abre os olhos. Quando a pólvora dispara. Quando, enfim, chove!

Dumc durunc durunc dumc durumc durumc dumc

Quando quinze mil olham juntos para o mesmo céu.

Quando os braços são agitados envolta do corpo em transe. E os dedos formigam. E a beleza se manifesta em meia fração de segundos em um lugar onde você não pode identificar mas está lá e sempre esteve e quem era você que não viu antes?

E as peles queimam sob o mesmo sol, e recebem a mesma benção do sal do mar que se estende até lá o fim. Esse arrepio. Tudo isso.

Os tambores dizem “não há o que temer. O escuro escorre e amacia a alma. O veneno da mais cruel cobra amolece os ossos e faz o velho homem descasar em paz. Assim, de levinho, é só escutar com atenção Shhhhhhhhh..... aí vem um passarinho!”