Para matar de saber. Sabia tanto que morreu o pobre homem dos recantos isolados. O que mais você quer que eu diga? Tem coisas que não tem respostas. Você me chama de hipócrita, pois eu te chamo de também. O que quer mais saber de mim? é só isso. Não basta? E pouco? O que mais você sabe? O que mais você é? Você é? O que? Cozinheiro? Encanador? Orador? Padre? Você é um velhinho? Você é a sua avó?
E essa ruga? Essa ruga que tem debaixo do olho, depois dos cílios, o que é? Você cresceu e veio fazer o que aqui? Você ta indo já? Não espera? quer um chá? Chá de limão faz bem pra saúde. Quer café? Passo rapidinho, você nem vai notar enquanto a gente conversa. Tenho tanta coisa pra falar... está atrasado, não pode ficar. O trem sai as 11, realmente falta pouco, outro só amanha, meu bem. não me avisa quando chegar. Não, não quero saber. Você pode morrer, o trem pode virar, atentado terrorista, vai saber, eu que não quero saber dessas historias. Da sua infância eu queria, mas você não tem tempo. Pode contar de ontem, ou de minutos antes de você chegar aqui, o que ouve? Você viu? Viu a rua? Ela tava branca ou amarela? Tava frio? Ventava? Tinha moças e homens desonestos? Você falou com eles? O que eles falam? Eles falam? Você queria saber se eles gostavam da sua aparência. Tinha homens desonestos e um velho senhor que tentava atravessar a rua.toda vez que vinha um carro ele recuava. Não conseguia correr, não é?! Então assim ficou ali mais de meia hora. Você o viu? Antes de entrar nos Correios ele estava lá e quando você saiu, ele estava lá ainda, no mesmo lugar! Que incrível. Viu, você podia ter me contado isso sem que eu precisasse te perguntar. O que mais você viu? Viu as flores? As flores da banca em frente ao viaduto. Sim, elas estavam transbordando de infelicidade! Eu também já as vi, eu acho que sou como elas. Sou uma flor no meio da cidade. Mas essas flores são mais felizes que eu porque elas têm companhia e eu não. E você, o que é? Você tem essa ruga aí, você caiu? Ficou preocupado? Dizem que as rugas verticais são sintomas de uma mente perturbada. Mas essa sua ruga aí não é vertical. Você teve um grande amor perdido? Ela morreu de alguma doença que você passou pra ela? Pneumonia? Ela tinha os pulmões fracos e você cuidou dela durante 20 anos antes de chegar aqui. Você está exausto. E agora ela morreu e você não sabe mais o que fazer com o tempo que você não está remediando a pequena. Sim eu imagino igualzinho a o que foi, se é que você me dá a licença: era um apartamento assim pequeno, quarto e sala e nada mais. Vocês deixavam sempre as portas fechadas por causa da corrente de ar que transpassava a casa. A cozinha era salpicada de pequenas baratinhas simpáticas, você não tinha tempo ou ânimo para matá-las, afinal, que mal fazem? Você repetia essa frase a si mesmo e a sua convalescente esposa “afinal, que mal fazem?”. Não fazem mal algum, não é verdade?
E tinha aquele papel de parede cor de creme, com umas florzinhas de mostarda! E aquela luz, refletindo as florzinhas e fazendo desprender dos cantos da casa um cheiro de tragédia contida....que te fazia vomitar. E você ia vomitar no lixo lá embaixo, na rua, para não saturar ainda mais aquele ambiente que se você fosse dar um nome seria um nome bem brega, como ‘ar comprimido’.