6 de junho de 2020

Telegrama chinês

Hoje mesmo
vivi um verão inteiro
Talvez amanhã acorde em 2016
Quem sabe
Enquanto calculo meu ciclo
mancho os lençois
a lua se esconde
Meus gatos agora devem estar dormindo na janela
sob o sol carioca das duas da tarde
Lembro quando o canino esquerdo do mais velho caiu
Ele ainda nem morreu e eu já tenho tantas saudades
Aqui, 1:11 da manhã
Peço nescau gelado no serviço de quarto
Amanhã trabalho cedo, no palco, que é meu lugar favorito (depois das florestas e dos buracos dentro das cachoeiras)
De manhã cruzo com crianças chinesas de mochilas e franjas
Aqui os bebês também choram
Todo o resto é diferente
Invento o conteúdo dos letreiros
Me divirto só
caindo de bicicleta em curvas acentuadas demais
em estradas encantadas, só minhas, por 10 km
Comi ostras
coisas de dentro de conchas
algas e transparências estranhas
Fecho os olhos e não me lembro onde mesmo estou
Havia sonhado com paisagens tão antigas
Com toques que já não existem mais
Depois meditei sobre Saturno e pedi para que ele fosse sempre gentil comigo
Sei que não é de sua natureza
Mas não custa tentar

abusivo


aos machos ascencionados da minha life
(que me roubaram a palavra desapego e amor incondicional e as fizeram parecer discurso hipócrita)

Gengibre é bom pra garganta
Limão pro sangue...
Alecrim pro coração
E pro caráter é bom o que?
Deixa eu te recomendar
Sou expert em afeto
Em campo emocional semântico sou PHD
Apesar da minha função, pra você
(nossa, como demorou pra eu entender)
Sempre foi ficar na estante
vendo o teu jogo acontecer
E só sair de lá quando você quisesse fuder
Ou bancar por aí um novo romance
( pra quem? pra quê?)
Tempo dá novidade
E o fogo faz transmutar
Eu queimo, e não é (só) ansiedade
Se você entrou na minha fogueira foi porque quis entrar
Os mais fracos são os mais perigosos:
eles falam que não tem força, você dá.........
Aí já viu
Fudeu
Sumiu –
Quem fez já não está
É a transitoriedade da vida (som de pássaro)
o coração leve do desapego (mantra Om)
Que funciona mais ou menos assim:
“tu fica aqui, enquanto ta bom pra MIM
E eu falo o que tu quer ouvir porque sei muito bem te iludir
Eu não tenho nada a perder então é super easy me divertir
Mas quando eu cansar e vou vazar
E não mete essa de me responsabilizar
Amizade? É só com quem eu nunca comi.”
Aprendido?
Aprendi
Se você mentiu ou deixou de mentir
Se você sumiu ou nunca esteve ali
Se você amou ou só se lambuzou na dádiva do meu sentimento sincero
Já não me pergunto
Não te amo não te mato não te quero
e nunca mais te curo
(Eu, enfermeira pessoal do teu ego)
Eu rimo tudo enquanto escalo
e refaço o curativo desse rasgo-ventre-punhal desleal
que você me deu
num estalo
(E eu remendei muito mal)
Então, faz favor:
pega o seu xamã interior
E enfia
No Buraco
Do seu pinto sujo
E a CNV que se exploda (seu Compêndio -de-Não-Verdades)
Reprograma sua neurolinguística pra ver se com o coração dos outros pára de fuder
Ególatra do Instanamastê
Compra tua ascensão espiritual aí no pacote
um tapetinho, um mantra e um calote
Afetivo
Em nome da sacralidade do seu ser
Buda na bolsa de valores, manipulando os dados
E eu investindo em empresa fantasma
Você é moeda sem lastro
Sinceramente, irmão
Se tô sangrando agora (e não é metáfora não)
É porque tu me puxou o tapete
Me enrolou mais que baseado
Me fez engolir mais que boquete
E me roubou uns 9 meses de gestação
(De mim, e só, graças a Deusa eu acho)
Abortei tua mentira rranca viscera de gado
Sangramento menstrual fora do ciclo
Não precisa de doutor pra dizer, eu te digo
Chama mau-caratismo, uso e estrago
De hoje em diante só vou pintar vagina verde
Vagina abacate
Vagina cura e sangue escarlate
E ser como sempre fui: fina haste
Entregue e inteira
Acho que eu já aprendi o que eu tinha que aprender com você(s)
Deus queira

10 de janeiro de 2018

MORTE



Ontem eu era maior que hoje. Eu era mais forte, tinha mais dentes. Hoje tenho apenas um dente. Tenho unhas frágeis, cabelos escassos, uma perna pela metade, uma mão com três dedos, um coração que bate vez ou outra, e muito forte. Hoje quase não tenho ar. Acho que morrer é assim como sou eu hoje. Hoje eu morro e não tenho saudade do que deixo para trás. Hoje eu permaneço, fico, apodreço, em qualquer esquina, no pé de qualquer árvore urbana, totalmente indiferente ao rosto dos meus conhecidos, amigos, queridos. Familiares, seqüestradores, saqueadores, críticos de arte, curadores, empregadores, terapeutas, xamãs, donas de casa, domésticas, jornaleiros, porteiros e caixas de supermercado.
 É quarta-feira. A praia ainda está lá, sem o menor desejo de mim. A lua vai sair, é verão de novo e não existe amanha. O verão sempre traz a morte em mim.
Dois dias atrás eu queria ter filhos, marido, emprego, um carro. Plantar um abacateiro. Facilitar processos grupais. Amar. Ser amada.
Hoje eu lido apenas com a morte.
 Fogueira nenhuma. A imagem de uma fênix na parede me lembra uma lenda antiga que não é contada há muito tempo. Serão muitas horas, muitos dias meses anos de escuridão e amargo. Deve ser assim a morte. Escura e amarga, com olhos abertos fitando o lado de dentro da porta de um armário. Sem agenda. Sem sinal. Sem emprego. Sem função.
A cidade da morte pulula o interior do meu corpo. Tantos fantasmas que ficam aqui dentro só olhando: a sala vazia e tediosa que sou eu. A rede globo e suas vinhetas acusando a imensa, infinita repetição dos dias. Eu escuto o sinal dos intervalos na televisão dos bares, de tarde, quase vazios.

30 de outubro de 2016

inicio de pensamento sobre vestigio

O altar dos bebês abacates está enfeitado com flores secas. Dois potes de canela se vêem pela primeira vez e se apaixonam. Isso tudo acontece ao lado esquerdo da minha vista, enquanto eu cozinho ao fogão. Um estranho habito, como eu me percebo aqui.
O espaço é vibração de estar: freqüência cardíaca e cerebral.
O tempo não se toca.  Me sinto agora, quase impossível dizer, impossível dizer como. Por um segundo olho pra mim mesma nos olhos. Vertiginoso, eu olho pro que eu sou.  Será que a situação resvala ainda pro mesmo lado? Os lugares, antigos lugares de vida,  desses que quando a gente olha bem sempre está lá, em algum lugar. Essa pedra de repetição de si, o que sobra, quero livrar-me. 
Aproxima-te de mim , é como caminhar descalça na escuridão. Abrir o terceiro olho, filha. Tateia esta estrada na qual segue. Os tons diferentes de preto que se vê no interior das pálpebras. Os cheiros. Escuta com a nuca, fala com a barriga, abre o peito, se reintegra, abrindo espaço, pedindo licença pros habitantes etéreos do mundo. Seguirá na força do caminho que vem de dentro do teu peito, que jorra fazendo estrada à frente, a estrada que se faz no caminhar. Nada melhor do que a boa e velha presença.



7 de março de 2016

Daqui: boca vermelha de coração





Minha boceta de grinalda
boceta noiva
espinha dorsal de mucosa
respira no peito
planta boceta carnívora
catástrofe de engolimento
estopim
boceta de marfim
minha boceta noivinha sozinha
e o resto da mulher loba amordaçada
por mim




18 de fevereiro de 2016

12 VERÕES ATRÁS

Por enquanto está bem assim – disse, constatando latitude, longitude e presença do próprio corpo. Aqui está bem, não esta frio nem quente, nem barulhente nem morbidamente silencioso, nem melancolico nem euforico, nem fome nem enjoo. Olhou para o céu de azul infinito. Lembrou albatroz sobre o mar que estava ali em algum lugar (graças a deus). Pensou verão de uns 12 anos atrás, do cheiro da casa do amigo, Raoni, que sempre a deixava triste, da piscina do amigo que sempre a deixava triste, e da incapacidade do peito do amigo que, apesar de bem grande, não podia acolher toda aquela tristeza. A casa sobre a colina, alto lebron, os móveis e quadros de revista, todos os comodos vazios exceto pelo dele, onde ela estava. Agora está bem melhor que 12 verões atrás. A jovialidade sempre trouxe uma proximidade bem perigosa com a morte. Agora, menos jovem. Agora, menos morte. Agora, menos triste. Nessas horas a gente vê, como diria já a grande Inês: o sangue de jesus tem poder, está amarrado em nome de jesus, graças a deus deus existe. Amém.
Como foi que sobrevivi ao chão? Como foi que sobrevivi ao meio fio? Às baratas de botafogo? Ao conhaque em garrafaa plastica? Aos beatniks tagarelantes nas mesas de cabeceira, dentro das mochilas, debaixo dos braços nas praias a noite, nos onibus de viagem, nos escoderijos da cidade? Lembrou a amiga, sempre ela, que apesar de por vezes raivosa, indigesta, estivera ali sempre, segurando sua testa para tantos vomitos convulsos. O sangue da amiga tem poder. Como naquele dia que ambas bâbadas se esconderam em um caminhão com placa de são paulo. Iriam para são paulo naquela noite, foram para são paulo por alguns segundos. Pensaram são paulo. Pensaram sempre que não dava mais para ficar. Durante tantos anos, a cada instante: não dava mais. Seria o ultimo. O atropelamento à espreita, o remedio à espreita, os cortes no banheiro, o impeto do fim. Estavamos mal, como estavamos. Estavamos já no limite. Sobrevivi ao limite. Sobrevivi ao que já não dava mais. Àquela doença não sei, de alma. À tristeza da casa do amigo, à fuga cotidiana, ao sol inimigo que sismava em acabar com todas as noites sem fim.
Éramos uma legião nessa dor da juventude. Alguns mais assentados, outros mais sangrentos, uns mais misterisos, outros mais arranhados. Foi uns nos outros, caindo uns sobre os outros e sustentando uns aos outros, que pudermos sobreviver ao chão. Éramos órfãos, devo dizer. Onde estavam nossos pais?- é o que eu sempre penso quando penso em 12 verões atrás.

16 de fevereiro de 2016

nova ordem ortográfica

Nós tínhamos 33 chances de dar certo, com acentos, crases e tudo o mais. todos esses obstáculos da língua. Alfabetizados, ambos, em português. Língua materna, de bico de peito mesmo, na amamentação e no sexo. Dissemos A e B mas não cruzamos para além do alfabeto. Tem língua que a gente só entende no beijo. Deixando a saliva ir e recebendo a outra, de nação bacteriana estranha. Crendo em não contaminação,em não adoecimento. Crendo na relação biológica da simbiose dos afetos. Assim se dá a melhor mistura de cores, as vezes morrem uns, as vezes outros. sempre há morte envolvida na vida. O importante é que sigam, em contato, mais cores e estranhas formas. Seguir reinventando o fundo dos oceanos, os troncos das árvores, as comidas que comemos; Vegetais e fungos, sementes e ervas. Comida de passarinho porque permite voar, apensar de não nos criar dentes.
Afina-te mais com o pássaro ou o leão? Qual tua classe? Teu reino? Teu papel evolutivo? Dentro dos olhos: coruja ou caramujo? Quando bêbado: macaco ou serpente? Debaixo da cama: medo ou desejo? Dentro do coração: circo ou trovão?