Uma mariposa de mil asas bate em todas as paredes manchadas antes de cair dentro de uma poça de água, irremediavelmente tonta, e afogar-se.
Seu corpo quase oco se debate por longos minutos até sucumbir ao fim. As mil asas abertas, feito Jesus cristo crucificado. Mariposa cega. Morreu sem mais. A mariposa está morta, bóia.
Os infinitos feixes de luz que a sugavam agora se apagaram em completa escuridão de consciência. Mariposa agora está livre! Posso sentir sua alma em todos os lugares, pulsante, viva, de mil asas.
É que na verdade, quando em vida e em vôo- e biologicamente- a mariposa batia só umas seis asas, mas quem vê com atenção mariposa voando, com essa áurea iluminada, jura que mariposa tem mais asas do que essas. É que as outras estão dentro do corpo oco, oco de carne, mas cheio de asas. Entende?
Mariposa de mil asas. Coisa que nenhum cientista pode entender. Ele dissecaria o corpo oco, com suas laminas frias, e se lá não visse mais asa nenhuma, anotaria: mariposa de seis asas. Não entende, o pobre homem, que não se disseca corpo de mariposa morta? É uma flor aberta aos desejos, delicada e pura, de mil pétalas! Como pôde? Enfiar seu olhar metálico, camada a camada, até descobrir o nada! Naquele corpo tão santo, tão deus, tão cru! Então, depois de cometer tal heresia, em tom de verdade consagrada, vai o homem e anota: mariposa de seis asas.
Em sua tontura alucinada, cores e formas se misturaram e formaram borrões indescritíveis, cheiro de tudo que não tem cheiro, cheiro de morte, cheiro de adeus, cheiro de fim de ano. Mariposa, em sua loucura lúcida viu tudo, e depois morreu, e boiou. Livres, suas mil asas estremecem os ventos do meu peito! Fazem soprar as nuvens de todos os lugares do mundo! Mil asas em cada isto. Mil asas em cada tudo.
Olhai para o céu e procurai as mil asas. Olhai para os olhos de todos: mil asas! Mas quando se olha assim, sem atenção, dizemos: corpo de seis asas. E mesmo se abrirmos todas as carnes macias, à navalha fria de nossos olhares, ainda diremos: corpo de seis asas. No entanto, olhai a mariposa morta, cega, oca, e percebei sem qualquer intermédio da visão: mariposa de mil asas! E com atenção, em euforia da descoberta de amor e paixão ardente, apontai para todos os corpos do mundo e dizei, entre soluços e lágrimas: corpos de mil asas!
Até o pobre cientista, e sua navalha enferrujada, e todas as coisas frias e fracas do mundo: mil asas.
Mariposa está aqui, debaixo dos meus cabelos, enjaulada entre meus dedos! Muitas mariposas de mil asas dentro do meu peito! Mariposas saem por meus olhos e pela minha boca - abertos de espanto, escancarados, como buracos negros! Elas voam enlouquecidas, batem nas paredes e morrem afogadas de loucura e água, como eu.
E nesse vôo breve, que urra em cada peito e logo morre, é triste não poder evitar o fato de que serão abertas, de que serão dissecadas, todas, e serão anotadas à caneta fina: seis asas.
30 de setembro de 2006
A carne e a Navalha enferrujada
27 de setembro de 2006
B.A.B.A.C.A
BABACA,
Desça do ônibus e caminhe por essas ruas passadas. E não venha se debulhar em magoas, como uma velha infeliz, seria ridículo e imperdoável.
Coçou o nariz e prossegui no passo rápido. As mãos viciadas levavam os dedos inquietos aos cabelos crespos e ahhh, chega de adjetivos rasos. Já percebeu que não levam a nada. Perceba, que essa mansidão bovina te indica apenas o caminho falho. Ele quer o erro. Ele quer o câncer. Ele quer o que já teve e perdeu, pois em algum momento de fraqueza pensou em prudência e por ela se cegou. Ele sente falta do agora. E olha para as latas amassadas e os restos da comida dos empresários do meio dia no meio da rua e sabe, interiormente sabe, que aquela é a sua sujeira e se apropria dela, e tem vontade de pôr tudo na boca e mastigar e engolir, sentindo o gosto da verdade.
Era noite de coleta de lixo... os sacos pretos rasgados cobriam a encosta das ruas. Os olhos-farois das pessoas que passavam apressadas pra nada faziam questão de fechar. Mas ele via. Obsessão contida. Ele pensava que gostava daquelas baratas. Pelo menos não contavam mentiras. Elas são tudo que ele não podia ser. Elas são, para ele, a imagem de Buda.
Ele também queria ter casca, e ser feio, e morar no escuro, e comer a podridão da humanidade. Ele queria também assustar mocinhas, e caminhar por suas coxas suadas. Ele queria também espelhar o caos. Mas ele não era uma barata. Ele era uma vaca, uma vaca indiana. Uma vaca indiana babaca.
Então ele coçou o nariz e prossegui no passo rápido com as mãos viciadas e nada mais. Rumava para o obvio, como em colégio primário, preencher as lacunas da vida fácil, dada, pronta desde sua. Já não agüentava mais o segundo seguinte. Pesava.
Não seria melhor morrer ali mesmo? Deixar tudo escorrer pelos bueiro? Aquelas horas fartas, aqueles olhos mortos? Não seria melhor deixar tudo vazar no vazio e livrar-se logo do fato?
Mas não deixava.
Mais uma persistência, a inércia fala.
Obsessão contida e silencio, para nunca mais, nunca mais saber de nada.
15 de setembro de 2006
O Óbvio
Nesse momento de desordem, quando não se sabe nem ao menos pôr pé ante pé, as possibilidades são múltiplas e acabamos ficando perdidos no nosso próprio mundo de contemplação. Tudo se eleva e se faz real, um futuro possível, um presente vivo: o passo, a queda, o regresso ou a amputação voluntária das pernas. É tudo que poderíamos querer, é tudo que temos, momentos de desordem. Ardem no peito e varrem o mundo, as construções do centro da cidade estremecem e temos a impressão na pele de que, se nos fosse conveniente, derrubaríamos bastilhas. É tão obvio que nem atentamos pra isso. Passa desapercebido, como um passarinho machucado debaixo de uma arvore dançante, de galhos enfurecidos, de uivos de dor e miséria.
Foi em um desses momentos que então... o que houve? Foi em um desses momentos que, de repente, de corpos prostrados e imóveis... que, um dia, tivemos uma Idea:
“ e se engravatássemos porcos? E se leiloarmos as horas? E se fecharmos os olhos?” e ela se apossou dos nossos espíritos. Ficamos então com essas caras que conhecemos, de sonhadores da devassidão, de pervertidos pela vida. Nesse teatro desértico que se transformou as nossas vidas, as bocas gostavam de falar alto e de comer bastante gordura, os prazeres pulavam nos colos e incendiavam almas, tudo ardia, tudo deixava um cheiro acre no ar, toda a fuligem do submundo subira.
Os músicos todos resolveram fazer barulho: “ escuta! Escuta, meu filho, são os tambores de guerra.” E ele nunca mais saiu de casa. Ficou com medo da imagem grotesca que tinha construído de porcos engravatados errantes e dissimulados, que dentro de suas pastas de couro preto carregam uma foice para cortar a cabeça das crianças. As palavras ecoam na mente perturbada do garoto que mais tarde foi precisar de tratamento medico pois estava com anemia: não comia pois julgava que tudo era lixo, que viria perverter seu corpo de criança e sua inocência quanto a morte. “escuta, meu filho, são tambores de guerra.” E ele ouvia. Tum tum tum tum tum... e por aí ia... até a noite escura, quando o som se diluía nos sonhos de contos de fadas: belas meninas vinham desposar-lhe, e ele, sentado em seu trono real, negava migalhas às pessoas sujas que ficavam a porta de sua casa de ouro. Ele era o rei e cheirava a lavanda. O que pouco sabia é que, enquanto dormir, sua cara ensebada e seu ronco rudimentar o fazia assemelhar-se bastante com os suínos. Eu bem que tinha reparado! Pele rosada não pode enganar.
O pobre garoto não fazia nada. Apenas sonhava com seus dias de gloria em terras de paz e se mantinha limpo da sujeira do mundo. Não punha um dedo fora de casa desde que a guerra havia começado e era protegido pela moral burguesa típica - mas isso ele nem sabia pronunciar. “burguês? O que é burguês? Eles matam crianças como os porcos ou eles são mortos lá fora? São os burgueses que tocam os tambores? Ai que horror meu deus, os tambores!” e logo se esquecia daquelas esquisitices que em momentos de fraqueza entravam na sua pequena cabeça cheia de borboletas amarelas.
Ele não era deus.
Ele não era deus.
Tinha de saber isso. Tinha de saber que ele era um porco e que roncava de noite.
Mas ele nunca soube.
E ele morreu limpo.
8 de setembro de 2006
o mundo te espera sedento lá fora. e aqui dentro? mais de um milhao de vezes olhei nos teus olhos e eles pulsavam como laranjas loucas, transpirantes. mais de um milhao de vezes eu nao soube bem o que fazer. mais de um milhao de vezes eu sonhei com o dia que nao existesse mais um milhao de vezes.
todos se desfazem como bolhas coloridas e finas. que confusao, pensei. que confusao.
se tem algo que realmente quero agora é estar naquela sala escura, sem qualquer luz que me fizesse julgar as sombras, nos teus braços. nos teus braços. em completo silencio mental, em extase, em paz. nos teus braços. sem mais um milhao de vezes, sem questoes.
pode uma mente tao pobre prever se nao o obvio? o futuro me parece uma boneca de porcelana rouca. os anjos nao voam tao facilmente, querido, eles precisam de ameaças. por isso é bom manter sempre um revolver debaixo do travesseiro, para as noites insones, para as criancas rebeldes, para o lua que insiste em estar longe, tao longe.
mas nao vou me precipitar... reparei bem no garoto de pupilas dilatadas e maos ageis e vi, infelizmente eu vi, que nem ele pôde se livrar de si mesmo. que miseria, pensei, que miseria.
colapso moral.
19 de agosto de 2006
Ode a Ginsberg- o velho esfarrapado.
Cruzes! De madeira e de metal. Sofrem a oxidação do tempo mas nunca morrem, nunca. Fincadas na sua calçada, em frente a sua casa, recebendo o bom dia dos porteiros Josés e das Donas Marias que tem ascendência africana e carregam seus cantos de dor dentro de suas carteiras vazias. Perdão. Perdão, meus senhores, pelas cruzes e pelo sangue de seus filhos legítimos. Aqueles que não sofreram a inquisição, mas que a temem, ainda que protegidos por seda e pérolas.
Ornamentos de concreto é o que nos resta. A claridade ainda há e mostrar-nos nossa atrocidade cotidiana. De que é que reclamamos? Aonde enterramos nossos lamentos? Pelos olhos de quem escorrem as lagrimas que eu poupo?
Em um circo colorido expomos nossa arte. Dentre a fumaça encoberta pela lona, lá estamos nós, infelizes, corruptos, cheios de demônios vorazes da imperfeição e da castidade a deus. Falemos em teses de mestrado do jovem prodígio americano. Olhos azuis e barba mal feita não é o suficiente para redimir o mundo dele mesmo. Um belo sorriso não acalenta nossos pesares. Trinta casacos não curam as costas lanhadas. Oh, que os santos não se enfureçam com as nossa tolices. Pobres de mim e de você, meu amor, que eu não queria ver sofrer.
Pobres de todos nós, lunáticos, demônios do mundo sublunar que nunca, nunca vamos entender nem a metade do que somos e do que dizemos.
"Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose de qualquer coisa... que esfinge de cimento e alumínio arrombou seus crânios e devorou seus cérebros e imaginação? Que penetrou cedo demais em nossas almas. Que nos fez consciência sem corpo..."
nas paredes desse anarquismo distorcido e encoberto, erguemos também nossos túmulos. Quem irá nos visitar e dar-nos margaridas dos campos floridos da Escócia?
Ode à Ginberg, o sujeito esfarrapado e velho, que embora tenha passado sua vida procurando, nunca conseguiu encontrar qualquer paz. Ode a todos nós, estudiosos arrogantes. Ode, ode ao passarinho negro e a seu canto místico que fez adivinhada a nossa insensatez e a nossa luxuria.
14 de agosto de 2006
5 Estrelas Apagadas
Poesia concreta é para os fracos. Pra essa gente que não sabe o que faz e não tem jeito melhor de viver.
Eu fiz 25 hoje e ainda tenho fome. Se ao menos me restasse o puritanismo... Mas nem a navalha mais desdobra em mim qualquer sentido.
O mundo inteiro se enche de si mesmo e eu aqui com a minha palidez ridícula. Se ao menos me restassem os corvos...
O mar poderia estar em alvoroço que nem assim eu temeria a morte. Se ainda me restasse o rum...
E enquanto essa ausência toda me estanca, o passo inconstante prossegue no chão. Se ainda me restasse o giz... E uma cegueira de gente pobre e feliz... Se ainda ficassem rabiscos, se o papel estivesse rasgado, se o céu inteiro chorasse...
Enquanto a pele seca se estica nos meus joelhos, ele deseja mesmo era estar ralado. Se ainda me restasse o concreto áspero...
Eu deprimiria um palhaço!
O faria chorar todos os risos e ainda assim sairia intacta.
Tem jeito de ser mais nada? Tem jeito de ser mais nula?
Se ainda me restassem os circos...
31 de julho de 2006
Notas de Roda Pé
20 anos depois.
Depois das noites estreladas ou chuvosas, depois de manhas douradas, depois de muitas garrafas vazias de rum e vodka, morangos mordidos, almofadas queimadas. Depois de muitas vidas fartas.
Depois de cigarros apagados e músicas terminadas. Bandeiras rasgadas e lágrimas secas. O que sobrou?
O que sobrou de nossas historias de heróis e seqüestros? Das explosões que destruiriam a festa enfadonha que é o mundo e sua gente? O que sobrou?
E até mesmo das nossas danças na lua, e das calçadas molhadas durante a noite? Os nossos sapatos rasgados deixavam o frio entrar e nos arrepiavam os cabelos!
Aquela gente toda! Aqueles olhos agoniados, aquelas almas lindamente jovens, prontas, estéreis, pedindo para serem sedadas! E a musica ensurdecedora! E as palavras de gargantas arranhadas!
O garoto de peito em chamas,que guardava meia duzia de musicas do Kurt Cobain na manga, gritou para a floresta de eucaliptos. Ninguém ouviu, nenhum eco, nenhuma resposta. As palavras chiadas se perderam pela madeira e pelas folhas secas. O ponto mudo no fim se estendeu em reticências até hoje, até as ruas da cidade, até os ouvidos dos
nossos pais.
Quem responderá ao garoto? Quem gritará de volta? Bueiros sozinhos escutam suas palavras. Bueiros e baratas. Postes estremecem em sua agonia passada.
Ele acreditava que debaixo dos pés dos muitos andantes, e debaixo das caixas de cerveja dos bares sujos das esquinas, havia uma geração escondida, uma utopia perdida, um sonho esquecido.
Fechamos os olhos e ouvimos, se assim buscarmos, gritos mortos dos cinco amigos com unhas ruídas que acreditavam na revolução socialista e na poeira de seus sapatos! Urremos a eles.
Morreram de tuberculose os poetas do subsolo. Urremos a eles.
-"o que está escrito debaixo do seu copo?"- perguntemos a todos.
E dedicaremos assim nossas vidas á ferrugem do alumínio envelhecido das janelas do ultimo andar, onde não mora ninguém, onde pousam os pombos, onde estão escritas as letras do Elvis e da Madonna.
Gargantas saradas, dentes escovados, viram todos notas de roda pé.
Em um dos livros empoeirados do alto da estante, está escrito seu nome.
Seus olhos, sua rejeicao, também as suas idéias mutáveis e a sua ambição pelo niilismo estão em letras quase invisíveis á meio centímetro do fim da pagina. Ninguém vai ler, assim como ninguém escuta os gritos do garoto do peito
Será que ficaremos também escondidos debaixo das caixas de cerveja dos bares sujos de esquina?
Será que teremos nossas poesias escritas no alumínio enferrujado, entre os pombos?
Ninguém nos verá, ninguém saberá dos nossos amanheceres dourados e do frio que entrava pelos nossos sapatos!
O que estará escrito na nota de roda pé das nossas vidas?