29 de junho de 2006

"A tarde enlatada no mercado de Tókio"

A tarde enlatada no mercado de Tókio era assim:

Ela trazia trinta folhinhas secas e maçãs em calda muito deliciosas.

Tem uma escritura assim na lata:

“Coloque as folhinhas em um prato raso em frente a um ventilador, ligue o ventilador e esteja pronto para aproveitar a melhor tarde de sua vida.”

Os mágicos empresários devem ter deduzido que os compradores saberiam o que fazer com as maçãs em calda muito deliciosas.

O produto vinha com um nome de divulgação: “Tarde enlatada no mercado de Tókio”. Em letras vermelhas e em estilo rococó dos anos 30.

Por algum motivo acharam que esse era um nome e tanto. Super chamativo.

O cara que teve essa idéia usava um turbante legal na cabeça e comia lingüiça na fogueira todas as tardes na companhia de seu cachorro. Era um grande homem, diziam, mas só o cachorro sabia que ele na verdade era um cara triste. Ele era triste porque o turbante caia sobre seus olhos muitas vezes por dia, o que o obrigava a fazer movimentos repetidos com o braço direito, desenvolvendo uma disfunção motora por repetição. Assim, o grande cara, quando chegava a tarde, não podia segurar o seu espeto de churrasco com o braço direito, e segurando com o braço esquerdo, do qual nunca teve muito controle e nunca consegui desenvolver, sempre acabava deixando a lingüiça muito perto do fogo e ela ficava com o aspecto e o gosto de um pedaço de madeira queimada.

Apesar de todos esses contratempos que causava o turbante, o grande homem não poderia deixar de usá-lo. “Grandes homens usam turbante”- ele dizia ao cachorro. E o cachorro ouvia.

Um outro grande homem, e esse também usava turbante como todo grande homem, sentava-se sobre uma cadeira de isopor em frente a sua banca de latas “tarde enlatada no mercado de Tókio” em uma das grandes ruas de Tókio mesmo. Por razão desconhecida por ele, sofria de um mal: acordava e dormia com gosto de madeira queimada na boca. Nem a melhor pasta de dente poderia salvá-lo, ele era um dos grandes homens.

Mais tarde o mal do gosto de madeira queimada veio a ser chamado de epidemia e ganhou força na imprensa. Até quem não era um grande homem tinha sido tomado pelo desconforto que agoniava qualquer alma. Até mulheres, até meninos.

Pesquisas medicas, a ciência debruçada sobre tocos de madeira queimada em seus laboratórios bem equipados e tão brancos que poderiam cegar qualquer olho que não estivesse coberto por aqueles óculos protetores.

Zilhoes de medicamentos miraculosos foram inventados e vendidos até que outros mais miraculosos ainda fossem lançados, então os segundos aniquilavam com os primeiros, até que viessem os terceiros, é claro.

Até que um certo dia os homens resolveram esquecer sobre o mal da madeira queimada e voltar a suas vidas. Para isso, consumiam chicletes e balas e comidas sem intervalos, e bebiam as mais estranhas bebidas corrosivas de gosto forte e cor marrom, dinamizando a economia de todo o mundo. Dinamismo, sempre mais dinamismo para que o gosto de madeira queimada fosse esquecido. Cinemas lotados, televisões ligadas durante todo o dia, e o que mais pudesse roubar a atenção do homem da própria boca e fazê-lo negar a própria língua. Caries, problemas estomacais, muitos e muitos transplantes de fígados corroídos. Ótimos focos de atenção, ótimo jeito de passar as horas. Concursos públicos, viagem a lua, alterações do DNA, drogas alucinógenas e estimulantes, bombardeios, e mais chicletes, sempre um ótimo gostinho de hortelã na boca. Oh! Com um ótimo gostinho de hortelã na boca!

E com tanto que esse gostinho de hortelã pudesse amenizar a madeira queimada, a massa poderia seguir seu curso, e todos poderiam ocupar suas horas sem muitos problemas, sem que um grande incomodo chegasse a atrapalhar os sonho de toda uma geração. E ironicamente o sonho de toda uma geração era atingir o titulo de “grande homem”, e usar turbantes.

Se o cachorro do grande homem que come lingüiças queimadas pudesse falar... ele, certamente, não falaria nada.

27 de junho de 2006

No mercado de Tókio

Depois de cinco copos de água é assim que você se sente.

Porque não me avisou?

Você deveria saber e não tomou nenhuma providencia. Me viu entornando tudo dentro da minha boca grande e não levantou um dedo. Covarde.

Então é assim que as coisas são?

Eu não queria acreditar. Eu não acredito.

Vou tampar os ouvidos com dois pedaços de algodão ensopados de álcool e deitar nesse monte de pano velho até que um chamado divino me venha resgatar, ok?!

É que eu não quero mais nada. Eu não quero mais nada, e ponto.

Eu não quero nem o lirismo dos bêbados, nem o canto de Gaia.

Osmose. Um perigo. Cuidado você e cuidado todos.

Cuidado para não fazerem de si apenas a fusão deprimente de todos que te cruzam na rua. Cada um, cada cruz, e tenho dito. Dito eu, muitas mentiras, e como ser desenganado, peço-lhe desculpas. Culpa da osmose de novo, cuidado.

“ atormentas-te em vão a minha alma, ser infiel. Agora terá de arcar com a minha fúria! Condeno-lhe a cinco copos de água, e depois a uma morte crucificada. Agora traga-me um pedaço de pizza. E tenho dito”

Dito eu muitas mentiras.

Ninguém soube como se sentiram as pedras quando foram postas umas sobre as outras para erguer os castelos de cartas. Quando foram remetidas a essa hierarquia externa a própria vontade e obrigadas a subirem e dançarem e sobre a cabeça de suas iguais, sem nem ganharem títulos pois no final o castelo era de cartas. Ninguém soube como se sentiram as pedras. E ninguém se importa.

Eu aqui estou sentada esperando o castigo dos tempos por tudo isso que fizemos as pedras, enquanto todo o resto do mundo deve estar pensando o que vem em seguida.

O que vem em seguida?

O homem toca um saxofone enferrujado, sentado em uma cadeira de madeira velha que range a cada movimento brusco que o transe musical provoca nos músculos desse homem. Enquanto isso o sol de põe bem as sua costas e as folhas da arvore em cima da sua cabeça estremecem por um segundo antes de se soltarem do tronco seco e deslizarem amanteigadamente no ar, até tocarem levemente o chão. Depois o homem passa por cima delas, e elas quebram em milhões de pedacinhos que viram um lindo mosaico considerado pelas lesmas o mais belo evento natural de todo o ano. Fractal.

Uma bolha, dentro de outra bolha, dentro de outra bolha onde elefantes coloridos dançam ao som das notas tortas do saxofone do homem, que tentava improvisar uma melodia leve que pudesse transpor em musica o que o dizia a brisa daquela tarde e o sorriso de Madalena que aparecia apenas uma vez por dia, ente um gole e outro do chá das cinco.

Lesmas e elefantes dançam ao som do sorriso de Madalena, que mostra dentes tão brancos quando o marfim dos elefantes e possui lábios tão macios quanto o corpo das lesmas e ainda cheira a maçã fresca das colinas. Lábios tão úmidos quanto a margem do rio Mississipi e tão sonhadores quanto os passos de Oliver Twist. Eu nasci, eu cresci, tal qual Madalena, e acabei entornando cinco copos de água dentro da minha boca grande de lábios mais rachados e doloridos que a canção dos negros do sul dos EUA, ao quais eu tanto amo porque esses caras sim, esses caras sabiam fazer musica.

Então o tio John passava de bicicleta por aquela estrada de terra batida e amarela na manha do dia 24 de outubro e ouvia os corvos assustadores agitarem suas asas em algum lugar bem pra lá da plantação de milho, em cima de um possível espantalho feito de palha enquanto Dorothy jogava sobras do almoço aos porcos, que seriam a sua janta se não tivesse deixado ser levada pela musica do Pink Floyd até a terra de Oz. O que pouco sabia Dorothy era que em Oz tio John não passaria de bicicleta por lugar algum, que o possível espantalho seria feito de cimento e que em lugar de sobras de almoço, ela estaria jogando perolas aos porcos. Perolas que ela futuramente usaria nos jantares de velhos mágicos empresários que poderiam enlatar qualquer tarde de outono e vender no mercado de Tókio.

25 de junho de 2006

CERA

Naquele dia as nuvens pareciam massas sólidas de chumbo em alta densidade, prestes a derramarem-se sobre nossas cabeças.
Nada, no mundo inteiro, poderia fazer as nuvens parecerem menos pesadas, a não ser a chuva, se derramasse todo o chumbo no asfalto e levasse todo o peso embora pelos bueiros.
O peso das nuvens...era como olhar dos santos. Sempre sobre nós, no nosso encalço. Em nós. Nós sem teto que nos poupe dos santos e de seus olhos pesados. Nós, desamparados, sob o céu enfático, sob as nuvens deuses. Nós, sempre sujeitos ao peso das nuvens.
Homens, a sujeitarem seus corpos a qualquer brisa, a qualquer onda, a qualquer homem. Prostitutas do mundo; nós, sedentos pelas orgias da passagem do tempo, de cada segundo que morre no peito de cada um desses homens. Um luto eterno. Um luto a não morte, a não desistência da vida. Um luto. Nós, homens em luto por nossas costas a carregarem a insustentável leveza das brisas.
Homem, frente a seu mar de horas. Rente, o homem, a miragem dele mesmo. O homem, frente a seu próprio ombro, a seu próprio peito. Em chamas o homem. Em chamas, todos os homens. Em chamas, todos os peitos.
E a combustão não é eterna. É vela, logo apaga. Mas o peito arde enquanto queima, e sem a queima não há peito, pois o peito é a própria chama, pois a chama nada é se não a sua intensa ardência. A chama não existe se não ela, a chama sobrevive de si mesma.

E ainda assim não podemos falar sobre os infernos?

Mas o que seria o inferno, que não uma chama, eternamente acesa?
Eternamente em sua queima?
Eternamente em sua ardência dolorosa?
Naquele dia, assim como em todos os outros, as nuvens sabiam de todo esse inferno dos homens. As nuvens, naquele dia também, nada fizeram para apagar as chamas. E tampouco fizeram as brisas...
O tempo nada havia mesmo de fazer, posto que este é apenas o contador final das dores.
Os olhos dos homens, debaixo das nuvens e frente ao seu mar de horas, eram velas derretendo. A cera escorria dos olhos, a chama queimava no peito. Tais olhos, essas centenas de olhos, acesos como faróis, iluminavam até as nuvens com a luz do fogo de dentro dos corpos dos homens.
O chumbo, naquele dia, permanecia nas nuvens, rígido.
A chama que queimava nos homens nada fez em derreter o chumbo das nuvens. Ocupava-se apenas, a chama, de derreter os próprios homens e seus infernos de fogo.

24 de junho de 2006

de quanto tempo o mundo é feito

Disritmia

Disritmia surda que me come o peito

Que me faz doente

De um corpo que nem a própria pele pertence

Corpo errante, manco e vago

Que a terra cospe em desagrado amargo

-Onde ficas tu, homem deserdado, homem desterrado

Se nem a estrada te abriga, o céu lhe lança facas?

Onde dormes tu, se nem a noite lhe apanha nos braços?

E onde vai assim, tão determinado

Se cada passo evidencia mais o teu estranhamento?

Onde leva a tua luta?

O que colhe, o que semeia?

Se só vaguei pelo mundo, como um filho que a nada torna?

Deixaste um grão em cada canto, e nunca vai erguer florestas.

E és estranho em todo ponto.

És estanho principalmente quando frente ao espelho despeja teu desencanto.

Gosto amargo, amargo e forte

Um motim na alma e pernas bambas

Procura enfurecido por um amor quebrado

Que te permita medir teu afago

E não tem sonhos esse guerreio

Que a nada quer vencer e em nenhuma guerra morreu

Sangra o peito

Sangra a mão

Sangra o mundo enquanto anda

Sangra o sangue em veias abertas

Sangra e nunca morre

Mas não sangra de bala

De ferida aberta e não cicatrizada

Sangra o homem enquanto anda, sangra o seu andar

Sangra a solidão e o apego a nada

Sangra de saudade e de compaixão

Sangra de burrice, de incerteza e apenas sangra

Sangra o homem enquanto anda.

22 de junho de 2006

Brindemos ao Dharma

Meus olhos se abriram como se nunca tivessem, um dia, se fechado. A meia claridade não incomodava, era só o gosto de noite passada e de corpo cansado que denunciavam as memórias gastas de ontem ou de qualquer outro dia noite madrugada, uma hora trás, sei lá.

"Quanto tempo eu dormi? Eu dormi? Eu costumo dormir?"

Será mesmo isso um sono?

Às vezes acordo inda mais cansado do que quando me deito e apago. “Sabe garoto, fechar os olhos é uma tarefa ainda mais árdua do que abri-los”.

E é mesmo. Estranho como algumas pessoas sabem tanto da vida.

Que dia é hoje?

O sol se põe ou se levanta em algum lugar da galáxia enquanto a terra gira e nós nem sentimos. Será que eu posso ficar tonto se analisar com atenção a rotação da terra?

A poeira e a fumaça dos cigarros já apagados agem como uma cortina espessa contra a invasão da luz em algum lugar com cheiro de almas perdidas e escondias debaixo dos tapetes.

Minhas costas doem. Me comportei mal, acho, ou dormi sobre cinzeiros e capas de discos.

Carregamos os fardos das nossas gerações. É isso que fazemos todas as noites e dias e horas inseparáveis que tornam os dias indistintos, as pessoas indistintas, as frases, idéias, cheiros, vícios, vontades, valores. Quando tomamos a real consciência do nosso aparecimento e permanecia optativa no mundo, não conseguimos mais categorizar qualquer coisa que exista.

Retrocesso?

Não importa. É a questão dos extremos de um circulo. A lógica nos exime da condição de designar em que extremo se está. Não há, apenas. E não há como lutar contra a lógica. É como deus que paira sobre nossas cabeças e está enfiado entre os dedos dos nossos pés enquanto nem pensamos nele.

Bem perto de mim está alguém que vai morrer sem saber como é se sentir dessa forma. Tão catártico, tão implosivo, tão sozinho e unido a uma missão que já foi subentendida por si e por todos os seus psedo-parceiros de vida e de caos. Uma missão latente, e em hipótese alguma, ignorável, definitiva digamos e ainda não cicatrizada.

Bem perto dessa pessoa, estou eu. Alguém que não posso definir nem de longe, e que não sei se vai morrer conhecendo o estado de não implosão e catarse.

Acende-se um cigarro. Única vontade definível no momento. Um trago da bebida, uma dor que enlouquece mas não se sabe sua origem. Alguma dor em algum lugar ainda não definível por causa dessa sonolência que me acompanha sei lá há quanto tempo, pois tempo também não pode ser definido nesse estado de sonolência constante e assim se tem uma bola de neve que só tem a crescer e eu sei lá quando e como vai estourar pra depois começar de novo.

Ah, e o que vai ser agora?

Tenho que me virar pro lado pra ver se alguma coisa dentro de mim se meche e me joga de novo nas minhas carências pra eu saber as minhas necessidades e assim levantar e ir atrás delas. Ocupar o tempo. Ocupar as horas.

Tento não pensar em termos definitivos, não definir os meus atos e questões e impulsos. Digo apenas “por aí” e “mais tarde”. É claro, que certas coisas devem ser muito bem definidas, pontuadas, mas apenas internamente. As impressões, por exemplo, impressões devem ser definidas intimamente para que não se tornem cíclicas e enlouquecedoras, pois assim atrapalhariam todo o resto da não definição e seria necessário acabar com ela.

Há quem diga que isso é uma fuga. E eu não sei se acredito. Essa merda toda de saber o que quer da vida e correr atrás disso fede tanto quando a velha historia de ser você mesmo. Pra mim, pelo menos no momento, é bem plausível que não traçar metas e evitar os auto questionamentos que te impulsionam a real verdade. Agir sem critérios e intenções esclarece as faltas e angustias e principalmente as falhas de caráter.

É simples. Não sei porque inventaram tudo isso de seguir caminhos e buscar a felicidade e coisas do gênero. Deixe um homem no deserto por uma semana sem abrigo, comida e água e veremos pra onde ele anda depois. É natural, não existe raciocínio aí. Não existe raciocinio em nada que seja fundamental. Procura-se o que é vital, pois é imprescindível viver.

Para nós, lunáticos abastados de recursos vitais, outras coisas se tornam imprescindíveis, como a morte, por exemplo, assim como o prazer e as orgias verborrágicas. Para nós, lunáticos entre tantos lunáticos, o que resta é esse nilismo absurdo de tão verdadeiro que um dia ainda vai me foder se não abandoná-lo.

“Vivamos o Dharma, brindemos ao Dharma.”



21 de junho de 2006

TESTANDO