22 de julho de 2006

Um. Dois. trinta e tres

Nessa sua estabilidade forçada, eu sei que existe um abrigo. Abrigo confortável, desses que te esconde a qualquer custo da chuva e do vento forte do leste. E que apesar de te proporcionar muitos sorrisos e boas noites de sono, não a deixam vislumbrar a dor que eleva os homens ao seu maior estado de consciência e divindade. Você nunca vai saber como é acordar em tremores noturnos ou precisar de 5 cobertas para que seu corpo não se desfaça em milhões de pedacinhos, ou provar lagrimas amargas. Um sorriso pode ser mais ofensivo que uma bomba no café da manha, pois é desdenhoso a qualquer outra possibilidade de vida que não a sua própria. não sorria e baixe os olhos. É possível? É possível que reis e rainhas se juntem à plebe? É possível que espadas afiadas não cortem cabeças e guardem sua gloria para si mesmas? É possível que deus não subjugue lesmas? Lesmas... pobres lesmas que brilham apenas para os olhos de deus, para resgatar o seu olhar por ao menos um segundo. Elas se contorcem ali no mato, debaixo das bananeiras, e explodem-se em explosões coloridas e cintilantes por uma rápida aspiração de deus por seus corpos ridículos e moles. E depois choram, e depois morrem, em um segundo de perfeição, pois deus finalmente as olhou.
Quando a garota rala os joelhos e seus olhos enchem de água, o que você vê?
Vemos um lindo quadro, vemos uma inspiração de vida, vemos glóbulos brancos se amontoarem sob a pele rasgada, e por pura moralidade a oferecemos as nossas mãos ocas. Pois eu, não me deixando ser deus de ninguém, quero lamber suas lagrimas e o seu sangue, e engoli-los. É possível? É possível que a dor dos homens passe uns aos outros por osmose, não em compaixão, mas por razão nenhuma? É possível que senhores de engenho se submetam às chibatadas dos negros, chibatadas negras ?
O negro olha nos olhos do sr.barbudo e gordo, atrás da casa grande, acocorado em uma poça de lama. Ele lustrava seus sapatos e iria também selar seu cavalo. Mas naquela íris empobrecida pela idade, o negro vê. Ele vê toda a impossibilidade de vida do senhor, toda a intransigência das percepções, ele vê a ditadura da alma estagnada, e isso o amedronta. –ninguém sou eu além de eu mesmo.- ele não pensa pois não tem recursos para isso, porco burro que é, mas por ele penso eu. E todos nós vamos rumo ao farol. Eu, muito distante dos outros, em minha intenção de ingerir percepções que não as minhas. O garotinho faz recortes de jornal, e para que eu sinta as suas mãos tremulas de excitação preciso olhar de uma certa distancia e com bastante atenção. Seu corpo não pode interferir no meu e eu não posso me sentir presente pois isso estragaria tudo, e se ele cortasse o dedo, eu se fizesse uma linda montagem colorida e por isso ficasse feliz, eu não poderia cobrir seus pesares ou prazeres com a minha membrana. Ele não sabe que eu estou ali, claro, nem eu sei que estou ali. Ele não me olharia nos olhos e não entenderia que eu o entendo tal qual ele mesmo se entende. Pobre garoto, largado pelas lógicas matemáticas. Tinha três olhos o garoto, e só ele tinha. O pior é que nem foi vitima de Hiroshima e não era uma rosa muda como as que já tinham sido reconhecidas como um padrão de vida contemporâneo. O garoto tinha nascido assim e ponto, apenas, e por isso não tinha irmãos. Então vamos todos rumo ao farol. Todos se percebem, no intimo, como afrontas uns pros outros, e por isso existe uma repulsa de peles. Naquela família, que evoluiu dos macacos e de repente começou a segurar dados, o contato físico ficava cada vez mais escasso. Eles acreditavam amar um homem, nascido a 2.000 anos dali, no meio do planeta e debaixo do sol, e esse era o único contato físico que restava. As mulheres pensavam nele todos os minutos, inclusive durante o banho e debaixo das cobertas. Os homens pensavam nele todos os minutos, inclusive enquanto pensavam em mulheres. Ele era esse grande abrigo, que protege a qualquer custo da chuva e do vento frio do leste e que garante boas noites de sono. O único abrigo ao homem que se protege de si mesmo e que inveja os outros homens por não serem ele próprio.

12 de julho de 2006

Costurando meias

Dorothy jogava perolas aos porcos e rezava para Santa Terezinha enquanto Tia Emy costurava meias na sala, à luz do fim de tarde. Isso foi pouco antes da tempestade acabar com tudo e jogar a casa inteira aos ares, mas ninguém sabia disso a não ser os três cavalos que comiam suas graminhas a uns 5 metros de distancia, entre uma e outra amendoeira.

Então Dorothy estava a jogar perolas aos porcos e sentia aquela brisa que lhe acariciava o rosto em um transe quase sexual. Ela pensava em uma torre bem alta, de onde podia ver muito muito longe, até o horizonte, sem que nada tapasse a sua visão. Lá de cima, ela podia ver as colinas distantes e a migração dos pássaros selvagens que só sabem falar besteiras. O céu está calmo e em varias tonalidades de cinza, o que a confere um ocre sabor à boca, o que a faz morder os lábios e salivar um pouco mais que o normal.
Saliva com gosto de terra, deliciosamente com gosto de terra.

Tia Emy ergue os olhos por um segundo para olhar pela janela. Lá estava a torre de Dorothy, onde se debruçava docemente nos canos de ferro enferrujados para poder olhar lá pra baixo, e dobrava os pés pra trás, como que zombando da altura e do medo.

-“Ela está na idade de desafiar limites...”- pensa Tia Emy, fitando-a com os olhos plácidos, e com as mãos de papel molhado e amassado sentia o toque de seu vestido azul-claro e por vezes tencionava os dedos.

Dorothy, Dorothy, Dorothy, menina dos olhos brilhantes, apertava com bastante força os canos enferrujados e tinha as mãos frias e, agora, sujas daquele pozinho de tonalidade vermelha ou marrom, com cheiro sangue seco e tirava os pés do chão, desafiando o medo. Lá no alto da torre o céu a engolia e as nuvens a sorriam com leveza. Respira fundo e fecha os olhos, Dorothy, e sente a brisa e as mãos sujas. O céu te engole e as nuvens sorriem nessa tarde homogênea que nega,lívida, qualquer futuro e qualquer outra tarde.

Tia Emy a olha, lá do chão, lá de baixo, lá de longe, com seus olhos plácidos e pálios de catarata.

11 de julho de 2006

Olá voce sr. entediado e desconfortavel na cadeira da sala.
sua vida nao vai lá essas coisas?
voce as vezes acha que era melhor nao ter nascido?
reza todas as manhas para um jarro de planta com flores de chumbo cair na sua cabeça?
já quis matar sua mulher e seus filhos?
o unico motivo por voce estar vivo até agora é a tv?

Prazer...
Eu vendo armas.

9 de julho de 2006

OS BICHOS

Nessa época do ano os patos voam para o sul. Asas, bicos, penas vão com o vento, fogem vívidas da migração terrestre. Pois em terra, vão-se também todos os animais a marchar, tocados pelos outros.

São patas, passos, pés andantes, calos. Todos seguem o rumo.

No caminho não há água, não há comida, não há circo. No caminho não há nada, apenas o caminho e o horizonte. Seco. No caminho não há nada.

Vão-se os bichos tristes pela estrada nessa época do ano. Mas não estão à procura de algo. Apesar de não terem água, comida e nem circo, eles não procuram por nada. Apenas seguem o caminho para o sul. Eles são tocados por outros animais.

-Mas o quê há no sul? – Pergunta o pequeno potrinho ao amigo burro.

O burro para e pensa.

-Mas o que há no sul?- havia perguntado o potrinho.

O burro pensa. Havia anos que migravam todos para o sul naquela época do ano.

-No sul não há nada. Não há água, não há comida e nem circo. Lá existe só terra seca e horizonte ao longe.-Respondeu o burro.

-Então o quê fazemos na andança? O que fazemos nesse rumo, nessa pressa, nesse passo? – pergunta ainda o potrinho.

O burro pensa.

-Fugimos do tempo.

Como se sabe, o tempo passa diferente em cada lugar, em cada pedaço de terra, em casa filete de água corrente.

Fugimos das horas.

Os bichos marchavam para o sul naquela época do ano.

Eles fugiam das horas, pois mesmo sem água, comida ou circo, os bichos não morrem.

Apesar de serem tocados pelos outros animais, os bichos continuam de pé, são rebeldes à terra, não doam a carne.

Os bichos fogem do tempo, pois não morrem nunca. Os bichos não fogem da morte.

20.02.05

A sabedoria de Ray Smith

Barulhos secos. O cigarro queima, o copo range e paginas viram sozinhas com o vento. Enquanto isso, as folhas das arvores lá fora dizem apenas boa noite. Brisas mornas, dessa noite que se espalha com suavidade por todos os recantos, plena e grata.

Lá de longe se pode ouvir os gritos e cantos dos rituais indígenas que eu nunca vi, uma fogueira queima e madeira sagrada estala, corpos iluminados e abençoado, enquanto a noite se espalha tão incisiva e plena quanto os braços de uma mãe apaixonada por suas crias.

Algo se meche entre os galhos mais altos. Trinta corujas de olhos vivos despejam toda a sua sabedoria acumulada das suas muitas horas de vôo sobre as terras incendiadas das civilizações antigas e esturricadas. Lindos homens, mulheres e crianças, dizem as corujas. Lindas corujas, dizem homens, mulheres e crianças, e o mundo dança pelas veias de tudo que existe.

Ray abraçava seus joelhos e tentava aquecer seu sangue com o pouco de conhaque que restava na garrafa quebrada pela metade. Com a perspicácia de um deus consegue perceber cada som do mato, cada galho que estala embaixo dos cascos das mulas e cavalos. Um coelho ruivo de genes recessivos se encontra estático, aceitando interiormente a morte, enquanto a cobra coral o observa muda, imaginando as orgias do paladar.

Auto fagocitose do mundo, da vida e das pedras budas. Ray entende tudo, eu sei. E enquanto sua alma reza e paira sobre nossas cabeças, seu corpo adormece pálido, com um sorriso prematuro e desprovido de motivos no rosto.

Eu aqui experimento os sussurros do Rei Lagarto e alimento a minha devoção ao submundo norte americano dos anos 60, quando os jovens se debruçavam sobre algo mais do que um hambúrguer engordurado. Pobres estômagos contemporâneos. Pobres almas aceleradas.

Ray está morto, como deus, digo eu, mas temos sorte que ele tenha existido. Podemos ao menos carregá-lo no nosso bolso e sentir seu conhaque na nossa boca quando, por acaso, a vida desacelera e podemos estabelecer contato com tudo isso que paira sobre nossas cabeças apenas esperando que tenhamos a prudência de percebê-las.

Por agora, andamos por entre cabeças de porcos, respiramos fumaça, comemos demônios e passamos nosso tempo categorizando tudo que nossos olhares podem tangenciar. Somos o bruto e o sujo usando talheres. Somos o ventre dilacerado da Virgem Maria. Somos a impossibilidade, a implosão, somos rosas murchas, somos animais estéreis. Somos deuses embriagados, princesas presas em torres, dragões ferozes e príncipes encantados. Somos tapetes persas em leilão, somos o broto morto, a saliva de um cão, o escarro de um rei. Somos a mais pura pluralidade engarrafada.

E vamos explodir em mil pedaços de deuses.

Tudo o que sobrará no final será o Silêncio. Silêcio.silêncio.

Ray entende tudo, eu sei.

6 de julho de 2006

ECHOES

Overhead the albatross hangs motionless upon the air
And deep beneath the rolling waves in labyrinths of coral caves
The echo of a distant tide
Comes willowing across the sand
And everything is green and submarine
And no one showed us to the land
And no one knows the wheres or whys
But something stares and
Something tries
And starts to climb towards the light

Strangers passing in the street
By chance two separate glances meet
And I am you and what I see is me
And do I take you by the hand
And lead you through the land
And help me understand the best I can
And no one calls us to move on
And no one forces down our eyes
And no one speaks
And no one tries
And no one flies around the sun

And now this is the day you fall
Upon my waking eyes
Inviting and inciting me to rise
And through the window in the wall
Comes streamin in on sunlight wings
A million bright ambassadors of morning
And no one sings me lullabies
And no one makes me close my eyes
So I throw the windows wide
And call to you across the sky




P.F

4 de julho de 2006

O Passarinho cego e a poeira.

Desejo um dia encontrar um caminho de tijolos amarelos, onde eu mate a mim mesma e voe sem a perturbação mental típica desse corpo deformado. E encontrar uma terra onde crianças chorem e riam e arco-íris morram por detrás do grito das montanhas.
Ingressar em um vôo por dentro das nuvens que choram em dor por meu pecado de nascer e morrer. Uma terra onde as águas corram e cantem e onde os pássaros fiquem cegos, onde o lago seque a pele dos peixes dourados. Onde morram reis e rainhas. Onde morram arvores e apodreçam homens. Onde eu nascerei.
Um dia, desejo encontrar a estrela que brilha na minha mão, bem entre as linhas. A estrela que brilha por detrás dos meus olhos, que brilha na minha voz. Encontrar a estrela que brilha. Onde a escuridão caia sobre a floresta e deixe o mundo em uma nuvem de silencio arrítmico. Atrás da poeira, atrás do pior, atrás da senhora crescida e tola que eu me tornei, a terra, essa terra, arde. A terra, engole, a terra se esquece do que há por trás dela, e por isso é tão linda.

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Há exatos 34 anos, uma senhora abriu os olhos pela manha e percebeu que uma das arvores do seu quintal estava sorrindo. Há exatos 34 anos, essa senhora esfregou os olhos e voltou a fechá-los e a abri-los repetidas vezes, mas a arvore continuava a sorrir.
-``Mas como? A sorrir? `` indagava o velho, quando a senhora lhe contava sobre o sorriso da arvore.
Na manha seguinte eles estavam mortos, e não abriram mais os olhos.

Há exatos 34 anos, a garotinha de tranças louras e fitas vermelhas amarradas nas pernas tropeçou numa lata de lixo em um beco de um bairro pobre da Espanha assustando os pombos e fazendo folhas secas ficarem suspensas por um segundo no ar. Ralou os joelhos, os dois, mas não chorou. Há exatos 34 anos.

Há exatos 34 anos, o pintor inglês encontrou a mulher dos seus sonhos, enquanto tomava um café amargo numa tarde de um dia frio. A noite seria ainda mais fria e os cafés ainda mais amargos. A mulher sorriu ao homem mas ele não sorriu de volta pois estava ocupado analisando o jeito com que a luz incidia em seu rosto. Seria a sua próxima tela, se não houvesse pensado depois em uma arvore que ensaiava um belo sorriso, no quintal de uma velha senhora, bem pela manha do dia mais bonito da primavera. Há exatos 34 anos.

Há exatos 34 anos, um homem de bigodes e cartola anunciava uma grande festa a outros homens de bigodes e cartolas. Enquanto descia as escadas de uma bela casa de campo se desequilibrou e caiu. Antes de não poder mais enxergar ou sentir qualquer coisa pode ver o rosto de sua mulher no quadro da parede da sala. Um velho homem de cartola e bigode sangrou até morrer, sobre o tapete de flores azuis costurado a mão e leiloado por milhões. Um velho sangrou até morrer, há exatos 34 anos.