30 de outubro de 2016

inicio de pensamento sobre vestigio

O altar dos bebês abacates está enfeitado com flores secas. Dois potes de canela se vêem pela primeira vez e se apaixonam. Isso tudo acontece ao lado esquerdo da minha vista, enquanto eu cozinho ao fogão. Um estranho habito, como eu me percebo aqui.
O espaço é vibração de estar: freqüência cardíaca e cerebral.
O tempo não se toca.  Me sinto agora, quase impossível dizer, impossível dizer como. Por um segundo olho pra mim mesma nos olhos. Vertiginoso, eu olho pro que eu sou.  Será que a situação resvala ainda pro mesmo lado? Os lugares, antigos lugares de vida,  desses que quando a gente olha bem sempre está lá, em algum lugar. Essa pedra de repetição de si, o que sobra, quero livrar-me. 
Aproxima-te de mim , é como caminhar descalça na escuridão. Abrir o terceiro olho, filha. Tateia esta estrada na qual segue. Os tons diferentes de preto que se vê no interior das pálpebras. Os cheiros. Escuta com a nuca, fala com a barriga, abre o peito, se reintegra, abrindo espaço, pedindo licença pros habitantes etéreos do mundo. Seguirá na força do caminho que vem de dentro do teu peito, que jorra fazendo estrada à frente, a estrada que se faz no caminhar. Nada melhor do que a boa e velha presença.



7 de março de 2016

Daqui: boca vermelha de coração





Minha boceta de grinalda
boceta noiva
espinha dorsal de mucosa
respira no peito
planta boceta carnívora
catástrofe de engolimento
estopim
boceta de marfim
minha boceta noivinha sozinha
e o resto da mulher loba amordaçada
por mim




18 de fevereiro de 2016

12 VERÕES ATRÁS

Por enquanto está bem assim – disse, constatando latitude, longitude e presença do próprio corpo. Aqui está bem, não esta frio nem quente, nem barulhente nem morbidamente silencioso, nem melancolico nem euforico, nem fome nem enjoo. Olhou para o céu de azul infinito. Lembrou albatroz sobre o mar que estava ali em algum lugar (graças a deus). Pensou verão de uns 12 anos atrás, do cheiro da casa do amigo, Raoni, que sempre a deixava triste, da piscina do amigo que sempre a deixava triste, e da incapacidade do peito do amigo que, apesar de bem grande, não podia acolher toda aquela tristeza. A casa sobre a colina, alto lebron, os móveis e quadros de revista, todos os comodos vazios exceto pelo dele, onde ela estava. Agora está bem melhor que 12 verões atrás. A jovialidade sempre trouxe uma proximidade bem perigosa com a morte. Agora, menos jovem. Agora, menos morte. Agora, menos triste. Nessas horas a gente vê, como diria já a grande Inês: o sangue de jesus tem poder, está amarrado em nome de jesus, graças a deus deus existe. Amém.
Como foi que sobrevivi ao chão? Como foi que sobrevivi ao meio fio? Às baratas de botafogo? Ao conhaque em garrafaa plastica? Aos beatniks tagarelantes nas mesas de cabeceira, dentro das mochilas, debaixo dos braços nas praias a noite, nos onibus de viagem, nos escoderijos da cidade? Lembrou a amiga, sempre ela, que apesar de por vezes raivosa, indigesta, estivera ali sempre, segurando sua testa para tantos vomitos convulsos. O sangue da amiga tem poder. Como naquele dia que ambas bâbadas se esconderam em um caminhão com placa de são paulo. Iriam para são paulo naquela noite, foram para são paulo por alguns segundos. Pensaram são paulo. Pensaram sempre que não dava mais para ficar. Durante tantos anos, a cada instante: não dava mais. Seria o ultimo. O atropelamento à espreita, o remedio à espreita, os cortes no banheiro, o impeto do fim. Estavamos mal, como estavamos. Estavamos já no limite. Sobrevivi ao limite. Sobrevivi ao que já não dava mais. Àquela doença não sei, de alma. À tristeza da casa do amigo, à fuga cotidiana, ao sol inimigo que sismava em acabar com todas as noites sem fim.
Éramos uma legião nessa dor da juventude. Alguns mais assentados, outros mais sangrentos, uns mais misterisos, outros mais arranhados. Foi uns nos outros, caindo uns sobre os outros e sustentando uns aos outros, que pudermos sobreviver ao chão. Éramos órfãos, devo dizer. Onde estavam nossos pais?- é o que eu sempre penso quando penso em 12 verões atrás.

16 de fevereiro de 2016

nova ordem ortográfica

Nós tínhamos 33 chances de dar certo, com acentos, crases e tudo o mais. todos esses obstáculos da língua. Alfabetizados, ambos, em português. Língua materna, de bico de peito mesmo, na amamentação e no sexo. Dissemos A e B mas não cruzamos para além do alfabeto. Tem língua que a gente só entende no beijo. Deixando a saliva ir e recebendo a outra, de nação bacteriana estranha. Crendo em não contaminação,em não adoecimento. Crendo na relação biológica da simbiose dos afetos. Assim se dá a melhor mistura de cores, as vezes morrem uns, as vezes outros. sempre há morte envolvida na vida. O importante é que sigam, em contato, mais cores e estranhas formas. Seguir reinventando o fundo dos oceanos, os troncos das árvores, as comidas que comemos; Vegetais e fungos, sementes e ervas. Comida de passarinho porque permite voar, apensar de não nos criar dentes.
Afina-te mais com o pássaro ou o leão? Qual tua classe? Teu reino? Teu papel evolutivo? Dentro dos olhos: coruja ou caramujo? Quando bêbado: macaco ou serpente? Debaixo da cama: medo ou desejo? Dentro do coração: circo ou trovão?


25 de dezembro de 2015

Bacterianos nós

Pessoas ruínas entrelaçadas, partes pesadas, outros quereres. atrás disso tudo, dessa linguagem de afazeres: é o egoísmo que nos fala. Cresce o estômago de si, cresce o buraco do estômago de si. Como Ubu, suga espaços, suga almas, engole até a metafísica. Pessoas ruínas  tragam e são tragadas, fogem sem olhar pra traz, impõem as vontades de seus buracos. Não ouvem, não falam, soterraram corações, não sentem os pés, tem fome, sempre fome, tem cabresto, tem afeto ao contrário. tem muito sono, sem sonhos, acordam cansadas, precisam se livrar de si em miniaturas, em gozadas, na exaustão da fala, no projeto invasivo, no ser invasivo que é, que sempre foi, que será até que morra, e vai morrer pelo estomago, comer-se, devora-se  por dentro, tornar-se si mesmo tantas vezes, e a cada vez menor do que era, até então virar brinquedo de si, esse pequeno ego cego, gritando, sozinho, com frio, tal qual um recém nascido cujo a única tarefa no mundo é multiplicar-se.
Bacterianos nós.
Deu-me canseira, cansaço, mormaço interno, tipo enjoo, sabe como é
Como um verão carioca dentro da barriga - fede,  derrete, entra pelo bueiro, é comido por asquerosas baratas, e fim. O verão acaba assim. Antes da acabar, por não suporta-se mais. No ultimo mês, antes do outono, já não existe mundo. Vagamos pela gravidade zero da espera. Já não queremos mais nada. O numero do ano nunca importou, tempo é cíclico. Eu chegando as trinta e minhas mãos infantis querendo dar-se a outras, enrugadas, caminhos profundos,para seguir caminho.


28 de setembro de 2015

macondo 1



O rio de janeiro queima debaixo do sol de marte.  Enfurnada no corpo a alma escapa, no suor, e toma o longo e lindo espaço vasto do verão.Onde moram tardes sexuais nos lagos envolvidos nas areias finas.Meu mapa não revela a localização do desejo , sem coordenadas, me estiro na sombra para mais um cochilo. Sonho México e Frida Caloh. Tucanos e mosquitos. Verde musgo, lesma e ervas daninhas, o leito de um rio com jacarés, o medo do escuro morno. Tudo isso de uma só vez. Ampola noite de verão, que se antecipa. Arrasta todas as dores – os sentimentos evaporados negam palavra de ordem. Cinética poesia do caos. Escorro saliva no pescoço, dos beijos lascivos, as peles grudando lençóis, as estrelas contra céu da tarde, ave Maria nos sinos desta velha cidade nova. Há em todo canto um pedaço de ontem, do ano de ontem, do século de ontem. Longas horas de historia na memória, imagens gravuradas nas paredes de dentro da carne. Hoje não há refugio, é primavera escarlate, ipê vermelho germinando um raio de metros extenso, a fertilização selvagem, naturais germinações imorais. tudo trepa. Tudo goza. Tudo sente no corpo a falta do que ainda não veio. Doçura pesada essa do tempo. Cavalgando sem sela na vida, pelo pasto insolação. Eu tinha um compromisso comigo mesma até que me esqueci que eu existia. Ninguém cobra. Sou anciã quase sem corpo. Vivo nos espaços, solta. As vezes pouso. Devo acreditar nesta santidade do não eu. Nunca tive um nome. Aqui dentro eu surfo nas ondulações milimétricas de tudo o que há. Não quero perder nem mais um segundo tentando falar disso com você. 

17 de setembro de 2015

sangrar



Não fazer sentido nenhum custa um preço alto nessa vida
Mas tentar fazer deve custar ainda mais
Meu cavalo é o desejo natural
Meu estado é o pré-formal
Cor de tempo
Golpe de Minas
Sonho correndo com os pés na lama
Viver da superfície – profunda rotina
Dia rítmico no caminhar segredo
Dentro do peito fui ao Japão
Voltei para trazer o pão
Boa tarde de café, graças a deus
Estamos em casa, estamos em casa, no sofá
Aqui dentro
Posso me perder nas linhas que contornam as formas e suas mentiras risonhas
Como fatiar um holograma
Aqui dentro da cabana suspensa posso
Da cabana suspensa no tempo
Gaiolas abertas: a garganta e os dedos derramam desejos
Não me arrependo
Só quando penso