28 de julho de 2008

Para matar de saber. Sabia tanto que morreu o pobre homem dos recantos isolados. O que mais você quer que eu diga? Tem coisas que não tem respostas. Você me chama de hipócrita, pois eu te chamo de também. O que quer mais saber de mim? é só isso. Não basta? E pouco? O que mais você sabe? O que mais você é? Você é? O que? Cozinheiro? Encanador? Orador? Padre? Você é um velhinho? Você é a sua avó?

E essa ruga? Essa ruga que tem debaixo do olho, depois dos cílios, o que é? Você cresceu e veio fazer o que aqui? Você ta indo já? Não espera? quer um chá? Chá de limão faz bem pra saúde. Quer café? Passo rapidinho, você nem vai notar enquanto a gente conversa. Tenho tanta coisa pra falar... está atrasado, não pode ficar. O trem sai as 11, realmente falta pouco, outro só amanha, meu bem. não me avisa quando chegar. Não, não quero saber. Você pode morrer, o trem pode virar, atentado terrorista, vai saber, eu que não quero saber dessas historias. Da sua infância eu queria, mas você não tem tempo. Pode contar de ontem, ou de minutos antes de você chegar aqui, o que ouve? Você viu? Viu a rua? Ela tava branca ou amarela? Tava frio? Ventava? Tinha moças e homens desonestos? Você falou com eles? O que eles falam? Eles falam? Você queria saber se eles gostavam da sua aparência. Tinha homens desonestos e um velho senhor que tentava atravessar a rua.toda vez que vinha um carro ele recuava. Não conseguia correr, não é?! Então assim ficou ali mais de meia hora. Você o viu? Antes de entrar nos Correios ele estava lá e quando você saiu, ele estava lá ainda, no mesmo lugar! Que incrível. Viu, você podia ter me contado isso sem que eu precisasse te perguntar. O que mais você viu? Viu as flores? As flores da banca em frente ao viaduto. Sim, elas estavam transbordando de infelicidade! Eu também já as vi, eu acho que sou como elas. Sou uma flor no meio da cidade. Mas essas flores são mais felizes que eu porque elas têm companhia e eu não. E você, o que é? Você tem essa ruga aí, você caiu? Ficou preocupado? Dizem que as rugas verticais são sintomas de uma mente perturbada. Mas essa sua ruga aí não é vertical. Você teve um grande amor perdido? Ela morreu de alguma doença que você passou pra ela? Pneumonia? Ela tinha os pulmões fracos e você cuidou dela durante 20 anos antes de chegar aqui. Você está exausto. E agora ela morreu e você não sabe mais o que fazer com o tempo que você não está remediando a pequena. Sim eu imagino igualzinho a o que foi, se é que você me dá a licença: era um apartamento assim pequeno, quarto e sala e nada mais. Vocês deixavam sempre as portas fechadas por causa da corrente de ar que transpassava a casa. A cozinha era salpicada de pequenas baratinhas simpáticas, você não tinha tempo ou ânimo para matá-las, afinal, que mal fazem? Você repetia essa frase a si mesmo e a sua convalescente esposa “afinal, que mal fazem?”. Não fazem mal algum, não é verdade?

E tinha aquele papel de parede cor de creme, com umas florzinhas de mostarda! E aquela luz, refletindo as florzinhas e fazendo desprender dos cantos da casa um cheiro de tragédia contida....que te fazia vomitar. E você ia vomitar no lixo lá embaixo, na rua, para não saturar ainda mais aquele ambiente que se você fosse dar um nome seria um nome bem brega, como ‘ar comprimido’.

25 de julho de 2008

mais do mesmo

Cena 1:

No palco está uma poltrona de couro marrom, velha e gasta. Atrás, um grande armário de madeira com três portas. Ao lado, uma mesinha que sustenta um abajur de luz fraca e amarela.

Ana passeia pela platéia. A atriz, sobre o palco, fisgou no ar um movimento esvoaçasne do vestido azul turquesa. A seda fina roçava nas pernas de Ana, e ela passeava, apanhando um vento imaginário que varria os corredores escuros do teatro e as pernas das cadeiras do publico. A atriz se mantinha em seu mundo interpretativo, exatamente como haviam ensaiado: Ana passeava em volta do palco, ela permaneceria em uma bolha de silencio. Ana irromperia por uma das portas do fundo, ela a olharia, notaria seu vestido de seda azul, só.

Ela está de pé, em frente à poltrona. As mãos juntas na altura do peito e o olhar fixo em um ponto que só a ela foi desvendado (ninguém mais no mundo pode vê-lo). A luz vertical branca que incidia fortemente sobre seu corpo vai lentamente perdendo a sua força. Logo, só o abajur ilumina a silhueta da atriz e dos moveis dispostos na cena. A moça senta, delicada. Fricciona as mãos levemente. Limpa uma poeira irreal da barra de seu vestido. Olha para o lado, mirando o abajur, e o desliga.

Cena 2:

Ainda na escuridão, ouve-se um telefone tocar. O ruído agudo perfura todas as camadas do silencio entre o palco e a platéia. A mulher, sentada a poltrona como se não houvesse se mexido desde a cena anterior acende novamente o abajur. O telefone toca ininterruptamente. Ela olha o telefone por um período considerável de tempo e então desliga novamente o abajur.

Cena 3:

Um balcão de madeira fina atravessa a frontalidade do palco. A moça está usando um avental de aparência suja. Por baixo dele, está nua. Sobre o balcão, uma panela com macarrão cozido, ovos, um grande balde metálico contendo pedaços de carne de diferentes tamanhos, um par de sapatos masculinos e uma bola de plástico azul.

A moça retira um pedaço de carne e o coloca sobre o balcão. Retira outro, e coloca ao lado do primeiro, e assim sucessivamente até que se desenhe o contorno de um corpo humano. Dentro do contorno, o macarrão cozido é despejado. Ela o espalha suavemente até cobrir toda a superfície. Tudo isso deve ser feito muito lentamente.

Posteriormente, um ovo é posto no topo da cabeça do corpo construído. Outro na altura do coração e outro na altura do sexo.

Uma pausa de observação.

Coloca a bola de plástico azul no meio do peito. Os sapatos masculinos são calçados pela moça ( eles são bem maiores que seus pés).

De debaixo no balcão, a moça retira uma caixa de metal, que contém muitos pregos de vários tamanhos diferentes e um martelo grande.

Um a um, ela prega os pedaços de carne na madeira do balcão. Com um prego maior, ela prega a bola de plástico. A luz cai.

23 de julho de 2008

Ana me espera no fim da ponte. A água que escorre por baixo é a voz de Ana, que me chama. Parece que está lá há pouco mais de um ano, ou um ano exato.

Parece que todo esse tempo, não parei momento algum de ouvir o seu chamado. Ela estava lá o tempo todo, sempre, sentada na beirada da ponte, com os pés brancos afundados na água que me chama.

Ontem me banhei na água gelada e pensei em Ana. No outro morro pude vê-la, sentada numa arvore, com seus pássaros. Tive saudade de sua voz e medo de seus olhos. Seus olhos são amedrontadores, eu disse. Queria que fosse cega, que não tivesse olhos.

(Uma vez Ana olhou pra mim tão fundo que pude sentir meu coração parar. Pensei que não fosse voltar a viver, ou que viva eu estivesse pela primeira vez).

Mas não vou encontrar Ana. Não vou. Não posso. Tenho medo. Pois Ana é água. Está em todos os lugares do mundo e não posso prender em minhas mãos, ela vai embora.

Ana sempre vai embora.

18 de julho de 2008

CÓPIA

Havia algo atrás da parede. Eu havia sonhado, sim. Foi um sonho. Sempre sonho que há algo atrás das paredes. De todas elas, há um algo, um único. Sonhos repetidos, toda noite ou algo assim. Acordo no susto. Meus olhos pregados pelo sono. Desde criança tenho a impressão que alguém estava lá enquanto eu dormia.

Eu não sei dizer; qualquer coisa que eu diga fugiria do que é realmente a verdade. Estou brincando de pegar nuvens há tanto tempo...

Mas eu sei que há. Algo atrás da parede. É difícil especular mas. Mas isto é mais real do que eu mesmo, que me toco e sei quem sou e onde estou e esta mesa ali à frente e tudo que pende dela, todas as cordas penduradas no meu quarto. elas não balançam, mas poderiam, e essa possibilidade é tão real que eu acho que poderia fazê-la presente apenas pensando nela. Mas o algo atrás da parede nunca me apareceu. Uma sombra que desaparece na luz, eu posso imaginá-la. sou cárcere disso que não sei o que é, mas sou. Algo atrás de mim, atrás da parede, tem tirado a minha concentração.

Sonho que há uma parede e que há algo atrás dela. E quanto mais eu chego perto mais ela recua, e eu nunca chego onde queria chegar. E quando estou olhando, de longe, meus ouvidos parecem se fechar para todo o resto do mundo, e tudo que há é a imagem: a parede, e algo atrás dela.

Eu lavo meu cabelo com água de lavanda, numa bacia de metal, no meio de um grande campo de grama verde. A água escorre minha testa, na boca tem gosto amargo. O sol brilha lá no alto, eu não gosto dele assim tão grande e forte. Estou nua e meus pés sujos de lama. A grama me coça as pernas. Há uma urgência de alguma coisa. Não espero ninguém, tenho de inventar o que eu espero. Eu espero o sol se por para eu entrar de volta em casa e descer as escadas e me deitar no chão e me cobrir com um lençol. Sozinha. Na boca o gosto é amargo.

E eu fecho os olhos, sinto fome. Se eu comer o pão ele deixará de ser pão e se tornará eu. E amanha ele estará em meus olhos, pele e sangue. Tenho cheiro de tudo que eu como.

Eu não sei pra onde vão os pássaros lá em cima, que desenham um V na cor chapada do céu pesado de verão. Ele me impede de voar. Do céu caem pedacinhos invisíveis de chumbo e ouro, que me fazem ficar presa ao chão. Gosto de pensar que eu sou um homem. Homens sempre sabem o que fazer quando estão sozinhos e vêem pássaros.

Se eu quiser voltar para a cidade, vou ter de passar por todo aquele caminho árido, que me fez chorar já muitas vezes. Nos cantos escuros do caminho sempre se esconde um perigo potencial. Preferiria que o perigo se manifestasse e me arrancasse a cabeça do que ele ficasse espreitando, como fica. Me deixando passar, sempre, me deixando viva. Uma alma viva e amedrontada vale menos do que carne morta.eu sei. Ele sabe. E é por isso que me deixa viver. No escuro, por trás das arvores e matos rasteiros, caminha pesado o oscilante um monstro zombador e sarcástico. Nunca o vi, mas sei que existe.

Sonhei que entrava na mata, primeiro rasteira e seca sob uma luz amarelada do canto da estrada, depois escura e alta, e úmida. Lá no alto havia uma casa. Uma mesa de madeira velha estava coberta por muitas velas derretidas e apagadas. A cera cobria a outra cera e todas elas derretidas e secas faziam um amontoado esbranquiçado. Sei que debaixo de toda aquela massa havia alguém, uma pessoa morta. Meu avo, talvez, não vi, tive medo, poderiam me matar. A casa tinha a iluminação de uma tarde fresca, uma feixe de luz entrava pela porta. Da madeira das paredes desprendia um cheiro forte de algas marinhas e sal. Em algum lugar tinha um mar infindável e cinza, no qual eu nunca poderia navegar.

Um negro cor de carvão, (sua pele grossa e rachada, como madeira queimada) cavava um terreno feito de pó branco e fino. Ele estava no meio desse terreno e tinha uma pá. Estava agachado, manchado de branco, principalmente suas mãos e pés. Ele tinha os olhos grandes demais, brancos demais.

“Negris”, eu disse, chamando-o para pedir ajuda. Eu fugia de alguma coisa e ele era escravo da mesma coisa pela qual eu fugia. Ele me olhou. Virou a cabeça e me olhou, como um animal assustado.

Meu coração batia rápido demais, ele me deixava tonta com o barulho enorme que fazia, eu queria que ele batesse menos ou parasse. Nada era pior do que estar ali, não sei onde, mas ali, naquele lugar incomodo.

A parede, eu sei que eu estava olhando para a parede. É neste lugar incomodo que eu estou.

Uma vez sonhei que eu estava correndo no meio de um cemitério. E era tudo amarelo e marrom e tinham muitas arvores mortas que pendiam sobre a minha cabeça e os galhos pinicavam meu pescoço, mas eu continuava correndo. Pulava sobre os túmulos, todos feitos de cimento poroso. E quanto eu penso nisso tenho vontade de vomitar.

O que há atrás da parede é o meu inferno. Eu achei que teria a minha salvação, mas até então ela não veio. Eu achei que você fosse me ajudar.

Uma vez eu sonhei que eu estava numa casa destruída. Pedaços de madeira caídos no chão, alguns atravessados até o teto. Um espelho enorme a minha frente. Eu me olhava, me olhava. E eu chorei.

17 de julho de 2008

Aos Gatos do Pinéu.

Um gato mia ao longe. Miado fininho parece que sofre. Dor no esôfago, irritação do tecido, comeu veneno para ratos. Morre devagarzinho. Os pelos descem descansados. Pupilas dilatadas para um triste fim solitário, no meio das pedras portuguesas de Copacabana, um gato macho acaba de ficar inteiramente oco. A vida saiu pelo focinho gelado, a língua repousa deitada nos dentes afiados.

13 de junho de 2008

Foi


Eu estava no meu quarto, ouvindo musica e olhando pro teto. Eu estava triste, triste por uma porção de coisas. As vezes eu me encontro no meio do nada, sem nada a dizer e com mais de um maço de cigarro obstruindo os meus pulmões. Em completo desalento, constatando que eu não tenho casa, que eu não tenho nada, como sempre. Detestando minha falta de criatividade para inventar meus estados de humor.

Então eu estava no meu quarto, ouvindo Nirvana e Smashing Pumpkins e essas coisas que levam a lembrar de outros tempos quando eu ainda tinha esperança da vida ser algo além do que o agora e aqui, essa coisa sem glamour e depressiva que eu bem conheço. Essa coisa sem aconchego. Essa... essa concha na qual eu me meti à tanto tempo.

Eu estava olhando os pequenos relevos do teto, e pensando eu mim a olhar os pequenos relevos do teto, pensando como eles não foram planejados, pensando como eu não havia planejado para aquele momento. Pensando que aquele momento era mais um aborto de momento do que um momento em si, tendo raiva daquele momento, ficando triste e pensando em como as pessoas sabem viver e eu não sei e fica ali olhando os relevos do teto – pensando como aqueles relevos são na verdade mais um aborto de um teto sem relevos do que relevos em si.

E então entrou Ana no quarto, ela abriu a porta e entrou sem bater, e ela entrou rápido, como alguém que está procurando alguma coisa com pressa, e ela olhou para mim e em mim fixou seu olhar. Em mim ela fixou seu olhar, e pôs seu corpo numa base firme, com centro bem entre sua vagina misteriosa e seu ânus contraído, uma linha a puxava dali para o chão e ela olhava pra mim, nos olhos, na boca, nos olhos, nos olhos.

Então ela virou também o corpo pra mim e ela cruzou os braços e empurrou a sua bacia pra frente, como se esperasse alguma coisa de mim. Ela continuou me olhando, ela queria que eu dissesse ou fizesse alguma coisa, mas eu não sabia o que fazer então eu fiquei só olhando para aquele rosto branco e cansado e percebi que Ana parecia o fantasma do passado ou do futuro ou alguma divindade que conhecia a minha vida como eu conheço um filme que eu já vi milhões de vezes.

Fiquei incomodada com o olhar de Ana, ali, parada, com seus braços cruzados, mas principalmente com a impressão de que ela sabia o que eu deveria fazer naquele momento, enquanto eu... eu não sabia de nada e por isso estava a olhar os relevos do teto e a pensar depressivamente sobre qualquer coisa que pudesse existir e que existia no mundo inteiro.

Eu me sentei, com pesar, como se fosse ouvir um tremendo esporro daquela mãe branca e temendo a possibilidade de levar um tapa da mão fina e clara de Ana. Eu não agüentava olhar firme para seus olhos e por isso eu abaixava a vista e ficava acariciando meu tapete peludo com os dedos dos meus pés ainda sujos do dia que havia acabado de se findar. E eu ficava cada vez mais nervosa. Para meus constantes desapontamentos, Ana não dizia nenhuma palavra e sequer movia-se. Para meu desapontamento, eu não tive uma idéia brilhante para dizer a ela, e nem uma revelação espiritual, e tampouco me veio a cabeça uma historia legal para distraí-la. Eu ficava ridiculamente a baixar o olhar e voltar novamente a olhá-la.

Ana se sentou na poltrona do quarto, em frente a minha cama, e já não olhava mais pra mim. ficou lá, como que desapontada comigo. Olhava de repente, como se tivesse ouvido minha respiração se alterar e achando que eu fosse começar uma fala ou um movimento, mas eu não ia, eu continuava imóvel, e ela deixava sua cabeça retornar ao seu lugar vagarosamente, como se tivesse acabado de ver uma esperança passar voando e fugir pela janela até desaparecer.

Aquilo me cortava o coração, mais por mim do que por ela, admito. Eu, que nada sabia e nada fazia, era um pedaço de carne apodrecendo sem nem me dar conta de que vivia. Eu, que nada era, que nunca fui nada e provavelmente nunca serei nada. Eu, que não me cansava de me afogar cotidianamente no caos do mundo, no caos das possibilidades que leva a mais plena impossibilidade. Eu, que desapontava Ana há tato tempo. Eu... sinceramente, eu não sabia o que fazer com esse tempo todo que me restava.

Meu olhos se encheram de lagrimas, eu amassei muito forte meu travesseiro para não chorar. Ana se levantou. Eu a fitei, eu sempre a fito, como uma fada que se move da forma mais linda que um corpo poderia se movimentar. Ana desabotoou todos o vestido; ela estava enraivecida, dava pra ver no jeito com que seus dedos pegavam firma cada parte de tudo o que tocava, como se espremesse piolhos, carrapatos, aranhas, besouros, todos esses bichos que eu acho que Ana espremeria com raiva. Ela ficou nua, com o vestido jogado à seus pés, a pele branca arrepiada, os cabelos soltos escorrendo pelo pescoço e seios rígidos. Parece que todo o corpo de Ana tem toda a consciência do que é ser e estar ali. Era tudo o que eu queria. Então ela ficou nua e quando acabou de se perceber nua, voltou a me olhar. Agora seus olhos estavam mais escuros que nunca, mais profundos que nunca, como um mar em tempestade, Ana me olhava na alma, Ana me invadia e Ana era toda olhos e incitação. Ela queria algo de mim, ela postergava seu desapontamento final.

Mas o tempo chegou e ela deixou de olhar em mim e olhou o chão, o tapete manchado de café e com cinzas de cigarro. Ela fungou baixinho. Passou a mão despretensiosamente pelo cabelo. Então ela se retirou do vestido caído ao chão. Caminhou até a porta, passo a passo, pés presentes.

Ana caminhou até a porta, pegou a maçaneta, olhou pra mim mais uma vez. Suas lagrimas escorriam como uma cachoeira abundante, incessante, cristalina, águas brotando límpidas da fonte oculta entre as plantas.

Ela abriu a porta e se atirou para fora, em um susto, ela correu pro longe. Desapareceu.

Eu levantei, procurei por toda a casa. Ana havia partido, como sempre.

Eu voltei ao quarto. Abri a janela para que o vento me viesse acalmar. De pé, eu me despi de minhas roupas e tomei o vestido de Ana nos braços. e eu chorei. Chorei por ter feito com que Ana, tão bonita, chorasse. Eu chorei mais, porém, por não saber ao que me devo neste mundo, por não saber de mim, por não saber.

11 de junho de 2008

Desde quando a gente se encontrou, palavra por palavra, mas nada dizia nada.

Era tudo que eu não podia e tudo que eu precisava. Uma historia sem fim. Um corpo sem rim. Um coração de choques de momentos eternos e castos.

Aonde é que fomos? Por todos esses paços longos. Por toda essa estrada estranha. Sob um céu de mil gaivotas espantadas.

És um mistério, uma caixa fechada, um nó de mil parte. Todo paixão em pedaços.

Mas eu vou te encontrar.

Me perco, te espanco, te laço. Fazemos um casulo. Dormimos abraçados. Você me laça nos seus braços.

Entre olho e olho, um espaço.

Um hiato.

Coisa com coisa, subimos um no ombro do outro e olhamos mais longe.

Um fogo azul você pôs a queimar no meu peito, entre um e outro seio, no meio de todas as coisas e entre todas as coisas, o meio. O centro.

Meu coração está pendurado na parede do seu quarto. Ele ainda pulsa. Ele ainda chora. Ele ainda ama e sente saudade. E nossas mãos estão juntas num poço de pesares. E nossos pés estão frios. E nossos estômagos vazios.

O que é que fizemos? Aonde estamos?

Um deserto de horas pela frente me esperam.

Eu te guardo e te nino, você olha pro longe.

Mil desencontros dentro do único encontro. O único encontro, e nada mais ter razão.

O único encontro e nada mais ter motivo. O único encontro onde tudo se entende. Tudo se concentra. Tudo se explode. Tudo se sente. O único encontro e uma criação de mim. Criação de você. O único encontro, eterno, mil momentos eternos, mil pedaços eternos, mil canções.

Houve um choque, um espanto, e meu umbigo se amarrou ao seu coração. E o meu coração ao seu umbigo.